quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

porque ...


... nos dias em que acontecem coisas que as palavras não descrevem .... sorrimos e guardamos o momento. Gosto muito de ti Pipa !

:-)


Quando se tem juízo e não se liga muito ( nem pouco ) à bola !!!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

e um dia ...


... os sonhos ganham um rosto!

domingo, 12 de dezembro de 2010

joão

Guardamos nós coisas ? Coisas das pessoas ? Quer dizer, gestos ... sorrisos ... trejeitos ...? Aprendemos a lembrar alguém por momentos desse alguém, tornando a naturalidade dos seus movimentos numa espécie de DNA dele próprio, tornando-o ocupante de espaço único nas nossas memórias e ... quiçá espaço importante nas nossas vidas? Aprendemos a crescer com sorrisos sábios e alheios, que tornamos nossos porque neles nos tornamos melhores?
João sempre sorriu sereno, ensinando a transformar a vida dos nossos dias em dias da nossa vida. Escreveu e falou. E quando escrevia e falava dava-me a chance de o ler e ouvir. Ao lê-lo e ouvi-lo acrescentei sempre algo à minha vida. É uma sorte, uma fortuna, cruzarmo-nos com pessoas assim no nosso trajecto. Poder tê-las e guardá-las para sempre nos escritos que gravam na nossa vida.
Guardo-te João Fortuna. Levo-te comigo em gestos que aprendi no teu sorriso, no teu olhar convicto de que a vida se faz com verdade. Que sorte poder ler-te mil vezes mais. E olhando para dentro de mim, ver-te sorrir.
Um abraço deste miúdo a quem os teus abraços sempre souberam, sabem e saberão .. a coisas de vida !

sábado, 11 de dezembro de 2010

viver como antigamente ...


23,30. Ou seja, a 30 minutos do fim de um dia ocupado por várias incidências.
Pouca gente na rua, aliás vivalma, apenas candeeiros e carros estacionados. Um transeunte, a esperança de ajuda, de luz, de informação ... Carro parado, janela aberta e:

- Por favor, a Rua 5 de Outubro .. sabe onde fica ?
- Rua quê ?
- 5 de Outubro, onde fica a Farmácia Central ...
- 5 de Outubro, 5 de Outubro ... aqui em Carcavelos ?
- ' Não ', apeteceu-me responder, Rua 5 de Outubro em Bragança ... mas aconselhou o momento a deixar ironias de parte, em noite de procura da farmácia de serviço ... Sim, aqui em Carcavelos.
- Eh pá ... vais de carro?
( o demandante estava ao volante de um carro, motor a trabalhar ... o inquirido pôs a hipótese de, obtida a informação, a pessoa sair e procurar a paragem dos autocarros ou chamar um táxi, esquecendo que neste caso a informação pedida passaria para a área de responsabilidade do ' chauffeur de praça ' - não é bela a vida e insondáveis seus desígnios ??? )
- Vou ( temendo que me perguntasse em qual ) !
- Eh pá ... viras aqui à esquerda ( de repente parece colega do liceu ou da tropa ) ... vais em frente, sempre em frente ... vais e vais ... até chegar às bombas da gasolina, viras na última antes..
- Antes de quê ?
- Das bombas, das bombas .. portanto ... viras aqui à esquerda e depois é só seguires .. conheces as bombas?
- Sim ( de facto não, mas não era altura de apresentações, relembre-se que estávamos perto da meia-noite e o cansaço pedia mais celeridade que outra coisa ).
- Então viras aí ... vais sempre em frente até à linha do comboio, estás a ver ?
- Sim, sim ... ( nem comboio, nem linha, mas sim em nome do despacho ... ! )
- Pronto .. aí viras à esquerda e é só seguir a linha ( vá lá, não necessitava de aguardar chegada e acompanhar o comboio ) ... sempre em frente, sempre em frente ... e a 5 de Outubro é logo ali .. atrás do Centro Comercial, conheces o Centro Comercial ?
- Sim, o Centro Comercial ... ( tal qual via a linha, o comboio e as bombas !! )
- Pronto ... então a farmácia é aí ... mesmo atrás, não tem nada que enganar ( estranho agora não me perguntar ... ' A farmácia, conheces a farmácia ? ' ) !
- Obrigado, boa noite ...
- Agora viras já aqui ( a rua ajudava a entender tal acção, pois acabava ali mesmo e a esquerda era sentido obrigatório, mas o inquirido era pessoa de bons e decididos inícios !! ) ... e não passes as bombas, não passes as bombas.
- Certo, certo .. não passo ... boa noite e obrigado!

Perdi-me e acabei em Oeiras, com o deus dos desamparados a embicar-me a viatura para a Farmácia da Estação ... com luzes, gente e antibióticos à disposição!
Equacionei finalmente a aquisição de um GPS ... Pura e irreflectida reacção. Seria perder a vida, com gentes e momentos. Únicos. Reais. Obrigado amigo informador. Pelas evidências e certezas do caminho para a farmácia. Por estar ali. Por tornar algo automático, em algo tão pessoal.
- E sim ... não deixei passar as p #"?****% s das bombas, mas sabe, o senhor não me conhece, mas eu para me perder na estrada, preciso de um simples cruzamento.
- Percebes ??

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

neblina


É quase noite. A neblina envolve a cidade, toda a cidade, é densa e brinca com os contornos dos edificios, faz truques de ilusionismo com a luz que emana dos candeeiros públicos, das janelas aos milhares em seu mundo quadriculado e anónimo, veste a lua de mistério e pouca exactidão. Em breve a escuridão irá avançar e a noite far-se-á rainha em seu esplendor, os animais de rua recolherão aos lugares conquistados em geografias de betão e asfalto, os pássaros suspenderão seus voos, os humanos dividir-se-ão entre sonos justos, sonos inquietos, noites de trabalho, de sobrevivência, as horas curtas para uns, longas e frias para outros.
Adensa-se a neblina e tornam-se felizes as coisas inertes, recolhidas a paisagem de quietude imensa, de privacidade única, usufruindo o proibido sentido da vida dos desalmados.
Algures numa estrada perdida, que deixou há muito para trás os arredores da cidade, conduzindo sem rumo e ao sabor do tempo que se escoa em programa de rádio, Joaquim acende um cigarro, mais por companhia do que por vontade dele, abre a janela e extasia-se com a invasão do aroma das madrugadas, escuta o desfiar de melodias e as palavras sós do locutor. À sua frente tem por paisagem a enormidade simples da planície, uma serpente negra por onde levará seu destino e o contraste envergonhado da primeira luz da manhã. As cores surgem-lhe nítidas, límpidas, respira uma golfada de um ar puro e transparente, Joaquim sente-se ele mesmo com a liberdade sempre sonhada, guia, guia e guia. Sem fim e com vontade. Voltará à cidade, sabe que sim, sabe-o bem, despido de todas as penumbras que não as trazidas pelas neblinas dos céus. Ganhou um abrigo, um nome, um lugar, ganhou-se, reganhou-se.
Na cidade é agora de manhã, um cinzento aberta alumia todos os destinos, ninguém nota a partida de Joaquim, mas sentem-lhe a falta.
Voltarão os três, a noite, a neblina, Joaquim. Todos acreditam que sim!
Joaquim também.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

povo que não lavas no rio....

Será táctil ?
A estultícia
A necedade
Não, mas porém
Contudo
E com nada
Tanto lugar
Habita

Caminha, caminha, caminha. Não pares, digas ou penses. Vai.

Afinal ela
Não sendo táctil
Ou evidente
É sim retráctil
E assim certamente
Te confundirão
Com gente

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

homeless


Vagueio só, por entre vós
Penso vago em noites sós
Palavras que sois açoites
Em perdidas e idas noites
Pedaços de infindo fervor
Onde se inventava o amor

Quando em ruas tuas, cidade
Era uma vez uma história
Que nos lembrava de uma vez
Onde pouco importava a idade
Se não me atraiçoa a memória
Se não me engana a pequenez

Dos homens que fácil esquecem, e dos mundos que procuram, onde não cabem as noites nem dias, onde não vivem as letras de histórias ...

Onde não era vez alguma, noite em rua de ti cidade
Que não vagueassem sós, quem sabe por entre nós
Aqueles que de entre vós
Um dia o amor escutaram

Inventado e imaginado, e de pronto acreditado, em histórias uma vez contado, e era uma vez, essa vez, a única vez ...

Por isso cidade, em ti me acolhe
Em fim de dia sem noite avante
E se para me esquecer, não olhe
O homem de fraqueza bastante
Vã cidade, não contes a história
E nem de fracos
Nem mesmo de fortes
Guardes memória

Foto retirada daqui.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

pássaro


Nos entalhes
De teus detalhes
Poiso quedo, perplexo
No vazio
E esquecimento
Que triste, perpetuas

Como ousas
Querer voar ?
Pergunto e escuto
Abismado
Resposta apagada
Em detalhes e entalhes

Vive estátua homem
Imorredoira
Enquanto vôo eu
E mesmo parado
Afaga-me se cansada
De tantos sonhos teus


Fotografia de Teresa Maria Queiroz

domingo, 7 de novembro de 2010

Fernanda Mouro Vaz

Morreu Fernanda. Dito assim, é fácil de entender. Simples de absorver. Fernanda passa, com a sua morte, a ocupar um espaço diferente no mundo. Paradoxalmente, passará a fazer-se sentir mais ainda, dentro dos espaços que conquistou em vida de corpo. Onde passará uns larguíssimos anos mais por entre os vivos. Viva, portanto. Morreu Fernanda e cumpriu-se o ritual da passagem à terra que a guardará agora. Tal como quem teve Fernanda. Dentro de si.
Conheci Fernanda muito atrás no tempo, passámos a familiares por intrincado labirinto de laços de família. Mãe de Francisco. O Francisco que casou com Ana. Ana, minha irmã.
Fernanda era exemplo prático de uma educação com valores por vezes esquecidos nos dias de hoje. Na procura de sua correcta transmissão, de tais valores, tornava-se por vezes uma mulher de traços duros, de palavras poucas, porém atentas. Adorei todos os momentos em que a fiz rir, surpreendendo-se ela mesmo. Com a ousadia das minhas parvoíces. Com seu próprio riso. Busquei sempre o nosso caminho inventado, onde dividíamos o gosto pela família que era afinal dos dois. Perdoava-me as tontarias, abençoava-as rindo com gosto. Em momento algum falhou em sua bondade. Em momento algum tirou em demasia sua máscara de dureza. Em momento algum deixou de rir comigo. Em momento algum deixará de estar viva enquanto eu por cá andar!
Beijinho Dona Fernanda. Morreu, mudou de lugar de vida, passou a fazê-lo no sítio onde os corações se apertam em segredo. No dia 6 de Novembro. O mesmo dia em que nasci. Estamos guardados para ter laços não acha? Imagino-a a rir. E amo recordá-la assim!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

pessoal e .. transmissível

Não me lembro de ouvir uma única edição deste programa na TSF, com Carlos Vaz Marques, que não me prendesse, ávido e atento, até ao fim.
A pessoa é brilhante no modo como dá vida a uma conversa. Os convidados são, invariavelmente, alguém que vale a pena conhecer e ouvir.
Hoje tinha pela frente um regresso a casa cheio de trânsito. Por sorte eram 19,15. Por certo sintonizei a TSF. E entrou carro adentro, onde me escondia do mundo parado, criando o meu em viagem de pára-arranca.
E entrou o encanto da voz e vida do Carlos. Da verdade simples de Mísia. E entrou a imensidão de Fernando Pessoa.

E foi à volta disto ...

http://tsf.sapo.pt/podcast/files/pet_20101027.mp3


Sem imagens. Ouvido apenas.
E o trânsito fluiu.
E parte de mim ficou ali.
Guardei-te momento.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

memórias de uma praia



Faz calor, o do costume em mês de Agosto decretado e generalizado para tempo de férias, o tempo passa com o vagar de quem esquece as correrias e preocupações dos dias, mudam os cheiros e prepara-se a muda de cores na roupa das árvores, mudam as gentes que se cruzam com sorrisos desconhecidos, fugazes e felizes.
No parque de estacionamento da praia da Conceição, o rebuliço diário do velho arrumador de carros incomoda o velho palácio, outrora habituado ao cadenciado ritmo dos coches puxados a cavalo. Pela manhã, uma qualquer pois que se repetiam, eis que chegam e partem as famílias com sua criançada ao colo dos avós ou empregadas, reina a paz de quem tem pela frente a frescura do mar e o aroma divino da maresia, à mistura com cremes nívea e bolas de berlim quentinhas. Bee sente-se feliz, agradece ao deus que reza com maiúscula e olha pela prole que, não sendo muita, não é tão pouca assim em cuidados a observar. Os dias que se seguem, à volta de trinta, trazem o descanso de uns, trabalho extra de outros e a liberdade ampliada a meninos da cidade, habituados à nudez do espírito de asfaltos e pressas impessoais. A família reúne-se pois em espaços e tempos iguais num caos organizado, convive na estranheza do tempo tão disponível para uns e outros, aproximam-se os mais chegados em despreocupado ambiente, começam a partir os mais dados a caminhos de libertina liberdade, coisa de sentido único e pouca companhia.
Na praia, em face ao calor e ocupações várias, Bee agradece ao céu um dia mais no meio de gente sua, não pode imaginar, nunca o fará, que amor assim é coisa irrepetível, rara no mínimo. Assim entendesse o vazio, um certo vazio, de certos dias dos trinta seguintes.
A azáfama no pequeno areal traz aos veraneantes a certeza de sua escolha, a troca da gente fechada e ocupada na Lisboa agora longe pela gritaria da miudagem e disputa de um bom lugar para as toalhas, torna a chegada à praia num exercicio a requerer cuidada abordagem. Férias sim mas atenções em riste!
Este era o momento em que o infinito mistério dos aromas invadia para sempre as memórias de cada um, a receita local de mar e bronzeadores, de bolos e barcos de borracha, de baldes de areia ora seca ora molhada, dava a todos e a cada um a vontade de seguir caminho sendo feliz, despreocupado quiçá.
Bee era-o e saberia sê-lo, doravante e no passado, de outras praias e daquela também, ignorando apenas que certas coisas eram, senão irrepetíveis, raras.
O regresso da praia trazia mais cansaço que encanto, o sal do mar na vista e na alma, a longa escadaria a galgar de regresso ao carro, adormeciam a vontade do corpo e faziam adivinhar um apetecido almoço e garantida sesta de inicio de tarde, a mesma tarde que traria descruzados os caminhos da família, aproximavam uns e libertavam outros. De vez, mas isso Bee não podia prever. Ria franca, rezava sentida, mas pouco espaço dava a previsões, fossem de luz ou apenas sombrias.
Por volta do fim de tarde a mesa enchia-se de novo com pratos e receitas de verão, lanchava quem queria e isso eram quase todos, os que regressavam de nova visita à praia e seu mundo de liberdades e gente nova, os que aproveitavam as diferenças na paisagem para se sentir fugidos à rotina de um ano quase inteiro, os que apenas olhavam em curiosa postura o que traria a noite quando chegasse. Lanchava-se porque a mesa estava posta, assim era vezes ao dia, porque os cachorros quentes da manhã voltavam e com eles a comunhão de assuntos a dialogar com o preceito das coisas de rápida ou pouca importância.
O jantar, novo argumento para a presença de todos, família afinal, ocupava já Alice na cozinha, em seu merecido descanso de disputas entre netos, cantarolando por entre verduras e outros alimentos a temperar e cozinhar, por entre passado fausto que se esvaía em novos tempos, ainda que ao ritmo dos anos setenta se iniciasse o escoar de sua geração. Alice amava Bee em sua força de medo nenhum e isso cantarolava também embora para dentro e escondido em si, muito para além de tachos e panelas de verão.
As duas mulheres primavam pela fragilidade física, em contraste com a profunda firmeza perante a vida e suas agruras, coisa que tratavam olhando em frente, desarmando-a pela simplicidade com que entendiam a fraqueza alheia. Duas mulheres boas portanto, e no entanto de difícil evidência naquelas manhãs e tardes que teimavam em repetir-se todos os anos, que teimavam em viajar de regresso à cidade. Que teimavam em ir ficando, em mês de Agosto ou outro nome.
O serão teria inicio após o jantar, não sem antes a azáfama de nova ida à vila, com direito à emoção de um café junto à cosmopolita gente da terra ou visita à verdade das coisas feitas por artesãos e expostas em sua feira. Variando por entre espaços de tempo ora curtos, ora demorados, parte da excursão familiar desvanecia-se por entre uma oferta de adolescentes tentações, onde a noite acelerava livre nas mãos de rapazes rebeldes e meninas de beleza bem.
Bastas vezes, para não dizer todas as vezes, o regresso àquela casa que acolhia o mês de Agosto e os fins-de-semana do ano inteiro, era destinado apenas aos mais velhos, no que eram seguidos por um dos pequenos, que descobria no cheiro da praia e maresia a magia de perceber o bocado feliz no coração de cada um que julgava seu. Como Bee, como Alice, falho no entendimento de coisas senão irrepetíveis, ao menos raras, regressava no entanto a casa. Feliz, sorrindo, sonhando e cansado.
De manhã, na seguinte e nas que faltavam para completar as trinta que compunham a empreitada da viagem, repetiam-se os gestos e os caminhos que aproximavam e afastavam os olhares de cada um por ali.
Sonhando. Partindo. Rezando.... até que chegasse o dia trigésimo e o regresso à vida num bairro de uma cidade.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

um pássaro chamado amor


Aos quase noventa anos, Manuel esquecera já todos os labirintos por onde se deixara perder na fantasia infinita que a vontade de criança lhe escancarara, tantas eram as coisas e os dias por onde se embrenhara, fugindo ao medo de perder os minutos que as horas traziam, carregados de momentos mil, sonhos muitos e pessoas sem fim. De todos Manuel guardava agora um ténue traço, quase invisível, do que outrora desenhara o caminho de todas as manhãs e lhe tinha trazido e levado a certeza de conhecer o tamanho e o significado das palavras. Manuel mal ouvia e o silêncio seu companheiro resguardava-o da tristeza do desencanto.
A seu lado, numa ladainha que lhe soava familiar, Mariquito repetia as convicções que lhe invadiam o corpo em vontades e ousadias desacobardadas, segurava a mão ossuda do avô, como se descobrisse na sua magreza e fim a herança dos meninos de tesouros e segredos guardados.

- Avô, se eu um dia quisesse ser como tu ... importar-te-ias?

A chuva veio impiedosa, inclemente, e da praça fugiram as pessoas em busca de refúgio, debandaram os pássaros de asa curta e presa, esborrataram-se as cores das telas bonitas e vãs, sumiram os deuses das palavras sem nexo, e assim Manuel pôde chorar com todas as lágrimas de sua vida, porque era chuva o que lhe escorria nas rugas e na alma, lhe lavava a mágoa do silêncio, lhe arrumava e guardava a certeza de que nunca estivera afinal perdido em sonhos sós.

- Estás a chorar Avô?

E a manhã seguiu vazia por ali e por todos os lados mais, onde se refugiavam os desentendidos e os corajosos de lugar vazio de espaço, onde as almas se escondiam amando-se em espelhos de todas as formas, perdões falhos e certezas mortas. De caminhos e destinos apenas únicos.

- Deixa Avôzinho, que ninguém nos vê, deixa-te e fica que te guardo por esta manhã e por todas as que me esperem até me sentar em teu lugar, cuidas por acaso que ninguém nos olha, fugidos ao seu mundo das coisas suas?

Manuel agarrou a mão frágil e ossuda de Mariquito, como frágeis e ossudas são as mãos que se dão na força do querer e do corpo, sorriu ao tamanho insignificante das promessas de sentido vazio que escutara nos antigos dias em que ouvia o sol e a lua, e deixou-se dormir na mesma paz com que sempre soubera sonhar.
Mariquito ficou por ali, fechou os olhos também e desejou aprender como era perder-se no caminho onde não se perdia a vontade das pessoas!

A manhã simples, continuou!


imagem de bocados de tudo

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

amélia


Os fins de tarde traziam pois a Emília os passos apressados do mundo e a certeza das coisas incertas. Sabia que nada a faria viver longe da liberdade que aprendera no mundo imaginário de fadas e príncipes pequenos, nada lhe daria o significado das coisas simples se não entendesse a beleza da fealdade, a quietude dos mares agitados e a grandeza do tamanho dos soldadinhos de chumbo. Por isso se deixava agarrar pelas letras falantes de quem pintava, escrevendo, paisagens de um vazio perfeito, em sua completa ausência de fins abruptos. Não a assustava a noite, menos ainda as manhãs, o frio ou as chuvas, fosse leve e fugidia a nuvem, carregada de escuro e papões a tempestade, Emilia recolhia-se e punha-se a recato, admirava, amava, sentia, guardava o de guardar, seguia olhando os dias com a mesma vontade que descobrira num dia agora longe, nas terras onde aprendera o trote dos cavalos selvagens, decidira esconder-se da fantasia periclitante e seu universo de incertezas, trazidas pelos pássaros castrantes das perguntas sem resposta, fez-se sonho sem fim ou lugar, mascarou-se de raposa curiosa e experimentou de novo a sensação do infinito.
A manhã surgiu bruta em sua grandeza, tudo parecia gigante de novo, apenas vazio de palavras vãs, Emilia a raposa, corria solta em seu bosque de ninguém mais que não as crianças, a quem contariam agora seus dias de aventuras em mundo de liberdade, que fantástico o mundo que conhecemos nos dias de histórias e esquecemos na história dos dias ... Emilia corria desenfreada sem olhar ou cuidar obstáculos, voava de ramo em ramo, era macaco solto e feio e amava, calcava as memórias dos corredores e estantes onde sonhara materializar-se gente de estranhos deuses, piscava o olhar ao sol e à lua que lhe adornavam seu novo espaço sem reticências. E Emilia, a raposa, fazia o fim e o inicio de todos os dias em que por companhia tinha os sonhos.
De novo o fim de tarde veio lembrar-lhe que era raposa e curiosa de saberes, voltou ao lugar onde cabiam os mistérios, viu-se sentada num galho da árvore da sabedoria e perguntou-se:
- Quem és tu?
- Amélia ... uma raposa como tu !

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

monster

Garcez amava aquele monstro, amava-o todos os dias em que o monstro lhe pegando o sentava em seu dorso, em que o roubava ao tamanho do mundo, lhe desenhava as curvas e as estradas sem fim, as de vida e de paisagem, lhe trazia a vertigem de todas as vidas de todas as pessoas, na bruta força da liberdade do tropel dos cavalos, de muitos, quase cem achava Garcez, quase cem, sentia cada toque seu, cada rugido mágico, grande o monstro que ganhara a uma lutadora de rua a paixão de seu olhar de menino, Garcez voltava a ser menino grande, subia mais alto, voava mais longe do que nos dias em que descobrira máquinas com asas, sorria sem fim, era menino grande, homem solto. Garcez amava o monstro e queria-o seu para sempre, que não se fugissem, jurassem eterno seu amor, de vermelho vivo como só na terra do fogo, aquele monstro era o seu fogo e ele seria o seu principe voador em todos os dias em que ele acordasse e quisesse voar como os homens ...
E compôs-lhe um poema de amor ...

De loucos os momentos
Uivos teus de magia
Correndo livres
Assim me queiras viver
Teu, tendo-te
Imensa

sábado, 11 de setembro de 2010

Marco e Pedro ....

A rua onde ficava o Café que Marco frequentava chamava-se Rua do Café. Marco sempre achara que isso significava que a aldeia de onde viera não diferia em muito da cidade que o acolhera. Mal, mas acolhera, dir-nos-ia se lhe perguntássemos. Não o faremos, mas fica o registo.
Marco não se chamava Marco mas assim se fazia chamar, achava esse nome mais apropriado para quem viera de sitio humilde, Marco chamava-se Pedro mas decidira que esse nome o faria desaparecer com mais força ainda nas ruas da grande cidade. Grande mas com um Café na Rua do Café, onde se bebiam as mesmas taças de vinho branco, as mesmas mini's e martinis, onde se amarfanhavam as vontades de pé, encostado a um balcão. Marco amarfanhava as vontades de outro modo, não bebia taças mas mudava de nome.
Naquela tarde, como em todas as outras tardes desde que lembrava de frequentar o Café da Rua do Café, a mesa que ficava ao canto sob a ventoinha de plástico estava ocupada pelo mesmo homem de sempre, ninguém lhe sabia o nome nem se o mudara por questões de tamanhos e geografias, todos sabiam que não era totalmente provido de juízo pois de outro modo não fixaria o olhar no vazio como se rezasse ladainhas encomendadas. O homem mirava uma mosca poisada na mesa, a mosca não mirava coisa alguma mas, tal como o olhar do parceiro de mesa, não voava dali nem deixava adivinhar que o fosse fazer, ambos pareciam pertencer à casa, melhor ao Café, na Rua do Café como se disse antes. Marco achou que aquele era o dia, o momento de entender porque nunca se sentira em casa na cidade grande. Dirigiu-se a ambos, puxou uma cadeira, sentou-se.

- Olá, chamo-me Pedro, mas podes tratar-me por Marco.
- Olá.
- É tua amiga? A mosca ?
- Estudo-a apenas.
- Como te chamas?
- Marco. Mas podes chamar-me Pedro.
- Que te diz ela?
- Sofre em silêncio...
- Sofrem elas ? As moscas ?
- Em silêncio. Sim ... como nós!

Marco levantou-se, olhou aos lados a conferir se alguém o observara, e pela primeira vez na sua vida pôs-se a questão: sofreriam as moscas, seria isso possível? Tão insignificantes e feias. Sabia-as aos milhares, não, milhões, conhecia-as bravas e varejeiras, de casa, de cavalo e de estábulo, de bagaço, do berne e do gado e de mais e mais que não podia precisar naquele momento, mas sendo assim tantas e de tanta tribo não lhes concedia a certeza no direito ao sofrimento. Eram feias e davam asco, fosse na aldeia que o vira nascer ou na cidade que o via morrer. Voltou à cadeira.

- Vivem muito? ... indagou a Pedro que não se importava que lhe chamassem Marco. O louco!
- À volta de um mês. À volta de trinta os dias para voar. E sofrer também.
- E voam e sofrem?
- E vivem. Viver é voar e sofrer!

Marco, Pedro de origem, experimentou os prazeres de imaginar e especular, não era de ciências nem de lá perto, mas achou que para se sofrer teria de haver cérebro e que bicho assim tão pequeno o teria pequeno mais ainda, que talvez a dor fosse então à proporção, sofreriam pouco elas, as moscas, ainda que voassem sem fronteiras mais que os trinta dias alinhavados para seu tempo de vida. Lembrou-se dos tempos de menino em que as apanhava e lhes arrancava as asas, sentiu um nó no estômago, corou de vergonha pela cobardia e amaldiçoou quem lhe ensinava que as moscas só viviam na merda. Na merda ? .. pensou, mas quem voa e sofre merece as asas arrancadas?

- Como se chama essa mosca? ... arriscou nova pergunta a Marco, Pedro de nascença.
- Não falamos sobre isso, olhamos apenas nos olhos um do outro.
- Ela olha-te, a mosca ?
- Voa, entra em minha loucura e voa.
- Como? Parece morta a coitada, nem se mexe ... não estará morta?
- Não precisa de sair dali para voar. Faz hoje trinta dias e escolheu seu destino imortal. Voará num louco para sempre...
- Esta mosca?
- Não Pedro, perdão Marco, a sua liberdade de ser insignificante!

Marco sentiu faltar-lhe o ar, pediu uma água que bebeu de um trago, renomeou-se Pedro, saiu do Café na Rua do Café, andou até se cansar de ver os rostos das pessoas que nunca reparavam nele, reparou em todas e desejou que pudessem sofrer e voar, andassem na merda ou não.
Voltou à sua aldeia, agora com pouco mais que meia dúzia de habitantes, seca e abandonada aos velhos que a houveram visto nascer, e abriu um Café.
Desejou um dia ver entrar o Pedro da cidade, o louco do Café da Rua do Café, e que trouxesse o seu olhar parado e a liberdade dos seres insignificantes que aprendem a voar sem morrer.
E sendo Pedro de novo, voou como nunca voara no bando de gentes da cidade, onde era pássaro fraco e Marco.

se vanessa cantasse assim ...

No alto dos céus voavam protegidos os pássaros livres, asas bem abertas e olhares sem prisões, amando seus horizontes de paz sem palavras, porque estas dividiam os homens e por isso os homens não voavam, porque quando os homens voavam faltavam-lhes as asas, porque voavam apenas seus espíritos e vontades, porque aí se perdiam na liberdade imensa dos medos e das coragens.
No alto dos céus pois, voavam os pássaros protegidos e os homens sem asas.
Na terra quente e na terra fria, nos dias de chuva ou calor sem fim, caminhavam protegidas as pessoas, todas as pessoas, as boas e as fracas, as grandes e as perdidas, braços bem abertos e olhares sem medos, amando seus horizontes de coisas de dor e tristeza, de sonho e paixão, cuidando-se sem asas em dias de rotinas e desenhos mesmos, e por isso os pássaros não caminhavam, porque quando os pássaros caminhavam faltavam-lhes os braços abertos, caminhavam presos e tristes, porque aí se perdiam na liberdade imensa dos dias de batalhas mil.
Vanessa viajou ao mundo dos pássaros e amou. Viajou protegida em celeste pássaro e amou. E Vanessa cantou aos pássaros a melodia dos homens em sua verdade e condição de simples ser. E cantou-a a Ben, o pássaro.
Pediu desculpas em sua impotência de se libertar dos terrenos lugares e esquinas de luz e medos.
E Ben seguiu voando e escutando, que feliz e triste seu olhar de lágrimas, que força o agarrava nas asas de sua incerteza. E repetiu a canção!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

comboio eléctrico

Sentado em frente ao mecanismo do rodado do comboio, Juande regressava às tardes de sótão onde se perdia em viagens de fantasia. Nunca as imaginara assim. Grandes. Sem côr. Quase sem vida, assim paradas. Dos ' úúúh-úúúh .. pouca-terra, pouca-terra ' que tão longe lhe pareciam cantados, ao vapor imaginado a sair em silvos de liberdade por pequena chaminé, dos momentos sem horas de acabar nem espaços de apertar, sobrava agora um aperto sim, porque ali parado admirava a grandeza da estação em sua imponente indiferença por quem corria a destinos seus, que pequenina e esmagada se tornava ali a sua vontade, que vontade de se encolher e esconder num sótão gigante que nada mais trazia que a magia dos campos selvagens. Juande percebeu que estava crescido agora. Grande. E com cores que iam do escuro ao claro e que consigo traziam mágoas e apertos. Como traziam pessoas a sério que se moviam na estação. Partindo...!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

tela de giselle reis

Gisele Dumont Reis
Lisboa 1948

Poetisa, pintora
...
Formação:
Línguas e Literaturas Modernas - Estudos Portugueses e Franceses da Universidade Nova de Lisboa
Frequência de Iniciação à Pintura, orientadas pelo Prof. Carlos Solano de Almeida na Galeria Hibiscus

Representada em colecções particulares.


Licitação inicial: 150 euros
Lance mínimo: 10 euros em relação à licitação mais alta ao momento!
Fim do leilão: 23h59m de sábado dia 11 de Setembro!

sábado, 14 de agosto de 2010

Joachim e Amélia

Joachim está ali encostado e sente um calor que sufoca. Havendo pouco o que fazer, o que querer, muito pouco talvez, Joachim agarra-se aos rostos que lhe garantem sua certeza última, sua esperança maior, seu pedaço de gente entre antigos e idos iguais, quer entender os risos esparsos em fugidios momentos de lucidez, d'outros que não dele, d'abençoados e não por ela escolhidos... longilínio o braço da loucura amante e isso sabe-o ele... de rostos sem traços e caminhos sem destino, pobres mortais de mentais iluminuras, tão cheio seu encostar abafado, Joachim quer sair mas sabe tarde, muito tarde, não tem volta seu caminho das coisas desacreditadas e por isso sufoca, quer chorar como se soubesse, quer chamar os nomes como se pudesse, quer morrer como se fugisse.
A sala está cheia por ali, de fumo e vazio, de risos alarves em pessoas de sortes vãs de tão fracas. Amélia repara naquele homem ali parado, encostado, acabado, desistido. Quer amá-lo mas tem medo, quer agarrá-lo mas não tem tempo. E ri. Ri. Ri.
Joachim chora e Amélia ri.
Juntos enlouquecem e se enlouquecem.
Juntos morrem!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

emilia ...


Emilia era vinda do fogo, era fugida e perdida no vento, levada em tropel de cavalo alazão e seu guerreiro sem temor, era fúria de guerras perdidas por todos e ninguém, em divinos caminhos de céus quentes e abafados e onde as palavras choravam, choravam sim, sentidos esmagados, sentidos mortos e esquecidos pelo bruto pisar da indiferença. Emilia era pois apenas um sonho salvo e assim se vivia.

- Bom dia! ... disse, respirando a vida e mistério que lhe adentravam alma a fundo, numa orgia de cheiros e memórias, assim era ela em meio ao mundo de estantes e livros por onde aprendera a sobrevivência dos simples. Olhava Emilia sua amiga nos olhos, amiga ganha ao espaço das indiferenças, a mesma e eterna leveza nos gestos, uma magia de movimento nas mãos frágeis e pálidas, que belo era o branco em ausência de cor, que vivo e triste seu olhar, nunca Emilia ousara invadir o santuário de pessoa assim, de deusa terrena, de brutal viagem aos corações que batem assim, de mãos que desenham sem papel, de pássaro que canta sem se ouvir, quem és, quem és, quem és ? ... senão o destino, decerto a voz por dentro sempre esquecida, de um dentro tão secreto e só, de um bocado tão impossível de sonhar e encontrar, como irreais eram as histórias que longe a haviam embalado. Em tropel de cavalo alazão. Quem és? .. perguntava-se sem querer resposta. Sabendo-a e guardando-a em segredo.

- Bom dia ... soou, ecoou, ressoou, voou e ficou. No ar ... no ar que lhe faltava, no mesmo ar em que voava os ventos de mulher livre, Emilia estacou e chorou, chorou toda a vida e bocados deixados em sitios sem lugar, em pessoas que não se deixavam amar assim. Simples. De mãos brancas e frágeis e alma de guerreiros sem temor.

Escolheu um livro e saiu, apressada e cheia, amarrando com força o aroma daquelas estantes de tantas letras, apagadas e gastas de quase esquecimento.

- Amar-te-ei sempre, sabias ? ... murmurou tímida. Por isso sou Emília, soube e pensou !

Cá fora a multidão esperava o dia, servia-se à pressa do mundo e das tardes curtas sem pôr-do-sol, vivia com avidez um céu sem pássaros nem ventos.

- Nós também .. pensou ouvir, julgou saber, como se de sua existência apenas soubessem eles.
O fogo, o vento e os pássaros que desenhavam arabescos no céu, figurinos de magia saídos de mão celeste ...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

do alto e da liberdade ...

Porque da torre sem lugar voavam os perigos
Assim sonhando liberdade em céus selvagens
Roubando às almas, a todas as almas, sonhos antigos
Amando-se livres em bocado de longínquas paragens

Os lugares sem tempo, os dias de amor herege
Nebulosos tais caminhos em que sonhas amar
Diria alta a torre que te guarda, te esconde e protege
Exila-te alma, foge sem medo, sai e voa em teu lugar

Imaginadas as noites
Repetidas sem fim
Idas as asas
Assim
Sós

Alta a torre que te enche a vida assim serena
Guardando-te calma em mundo de liberdade
Onde esconderias sonho e segredos sem alma pequena
Relembra-me vida a altura, o momento, com que idade
Aprenderei a amar

quinta-feira, 1 de julho de 2010

rodolfo

A chegada ao recinto da escola trouxe o do costume, nada de novo, a eterna violência nas palavras, os ditoches, os empurrões, um mundo de ódio e indiferença vindos do nada, vindos de ninguém que se julgava gente.

- Gordito, hijo de puta ... ahah !
- Por favor ...
- Não há favores, não para ti, monte de banhas ... escapa-te, escapa-te daqui senão apanhas mais!

E mais ... e mais e mais, haveria de apanhar Rodolfo, seis anitos em corpo disforme de matulão, onde escondia e guardava as lágrimas proibidas de chorar, onde albergava coração de menino bravo e segredo de cristão puro!

Naquela manhã a previsão meteorológica aconselhava todos os cuidados, o anúncio de chuvas pesadas e sem fim à vista trariam as costumeiras tragédias e enxurradas, mas a vida não se trazia com vagares e a busca diária dos biscates a todos arrancava para a cidade e suas esquinas, onde se arrancavam moedas aqui e ali, para a mesa e para o vinho, para trapos se sobrasse, assim se fazia a esperança de sobreviver a um inverno mais, de frio e chuvas, em demasia até para deus distraído, que os tórridos dias de matar o pouco gado aguardariam por ora a sua vez de fustigar de novo em seu inferno as gentes de Ciudad Maria Luz. Com chuva ou sem ela, a canalha invadia a escola, que por lá haveria quem lhes tomasse atenção pelo menos até à hora do mata-bicho a meio do dia. Os baldios, com suas doenças e bicharada, saberiam entretê-los por entre jogos de bola, brigas e desventuras outras, até que o escuro da noite trouxesse os medos do diabo e toda a vila se recolhesse em serões de sobrevivência, por entre zaragatas e juras de amor.

- E não olhes para trás ao fugir gordito ... cabrãozinho bom de apanhar!
- Não olho não ... não se olha para trás quando se deixa o campo dos fracos !
- Que dizes porco ... ? Que dizes ?

Eram as onze horas da manhã e Rodolfo absteve-se de responder. Por ele entrou e falou o poderoso, o todo poderoso, em sua fúria inclemente, em sua justiça do alto. Uma rajada de ventos sobre-humanos, portanto obra d'Ele em ira e de temer, varreu o pátio trazendo o caos geométrico onde a vida perdia os homens de vista, onde as coisas não eram coisas e apenas o medo sorria. Vivalma deixou de se borrar, choravam, choravam e choravam, era a morte e o fim, a solidão que apenas os bravos toleravam, e tudo o pátio vira desmoronar, por ali não havia nem bravura nem cristãos, apenas o esplendor da destruição dos pecados terrenos. Rezam as crónicas que quinze foram os minutos da purga celestial, de um céu enfurecido e sem azuis glorificados, apenas de um negrume sem dó, de um negrume que mortificava os olhares. Quis a ceifa raivosa arrastar a débil e fraca estrutura a que chamavam de escola como se de uma construção de papel se tratasse, não perdoando a ninguém, não esquecendo uns ou outros, fazendo entrar no descontrolado caudal do rio que lhe fazia vizinhança todo um emaranhado de vidas esbracejadas entregues numa orgia de choros rezados.
Manuel, Pedrito e Joaquin viam chegado seu momento, unidos como sempre em sua cumplicidade fraterna, sentiram o estrondo do embate e de mãos dadas gritaram seu último desejo ...

- Por favor, não nos deixes morrer sós Jesus!
- Não há favores por aqui ... estou aqui para apanhar mais, olhei para trás sem fugir!
... respondeu por fim Rodolfo, juntando três mais ao grupo que lhe encontrara os braços fortes, que os escondera do fim.
- Gordito, gordito, que fazes aqui sacana gordito ?
- Cala-te Manuel, um dia perderás o medo ao medo. Um dia saberás ser gente!

Eram talvez horas de descansar os céus e num repente se foi a tormenta. Em dias tornou a normalidade e reassumiu a vida seus contornos de gente apenas simples e fraca. Chorados os idos, idos os escolhidos, voltaram os dias de temer a sobrevivência. Voltou Rodolfo ao seu lugar.

- Gordito, hijo de puta ... ahah !

E Rodolfo de novo se escapou!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

dois projectos ....


PROJECTO 1

Vou organizar uma tertúlia em torno de dois romances, publicados pelo autor Orlando Pinto.
Tomei conhecimento destes livros ao entrar na sua mercearia com a missão de comprar uma ' mini ' para o ladrilhador a quem eu estava a dar serventia na obra em casa do Pipa.
É assim a vida, traz-nos momentos bons, encapotados em manhãs de trabalho e calor.
A tertúlia irá decorrer na própria mercearia, pelo que não poderá ser muito elevado o número de participantes. A ideia é falar, falar, falar ... sobre os livros e o tema abordado, Moçambique nos idos anos 50/60 ... as suas tradições, as vivências de quem ido da Metrópole por lá andou.
Li e gostei ... do modo franco e genuíno, por vezes ' naif ' da escrita do Orlando, da sua preocupação com um relato que verdadeiramente nos transporte para ' lá ' , mais do que adequar em escrita o que apenas se vive numa África que muitos nunca conhecerão ou compreenderão.
O interesse desse final de tarde em Setembro, onde iremos ' viver ' com o autor aquilo que nos deu a ler, implica como é óbvio a leitura dos livros por parte de quem quiser estar por entre palavras, queijos e um bom vinho tinto!
São dois os romances e adquiri-los na mercearia faz parte do charme deles próprios. Onde ?
Aqui !
Mais tarde .. lá para meados de Setembro, uma vez que a data prevista é no dia 25 ( sábado ) daquele mês, veremos se conseguimos ' encher ' a casa !!


PROJECTO 2 ... ajudando a ACREDITAR !!!

Em tempos mais ou menos recentes, alguns colegas OFERECERAM-ME obras suas a fim de serem leiloadas, revertendo TODO o montante conseguido para a ACREDITAR.
Depois de ter pensado desenvolver a ideia através da página daquela Associação, cheguei a um impasse, fruto de questões técnicas. E porque o que verdadeiramente me interessa é angariar fundos para quem esteve por ali quando o sol me parecia escuro ... vou avançar com a ideia aproveitando o Facebook, onde parece que o mundo está 24 horas por dia.
Irei apresentar fotos e descrição da obra a leilão, e notas sobre o autor, com a licitação mínima inicial e prazos.
Os colegas e amigos que me ajudaram com a sua preciosa colaboração foram:
João Lopes e José Borges ( fotografia ), Nuno Marques, Isabel Mantas, Rui Décio, Maria João Monteiro, Giselle Reis, Alberto Santos, Paula Mascarenhas, Maria João Gamito, Bela Silva, Mats Kristiansson ( pintura ), Élio Oliveira ( escultura )
A qualidade da apresentação das obras é a possível, uma vez que foram fotografadas por mim e trabalhadas através do Picasa.
Os preços de licitação base foram por eles definidos, sem qualquer outra intenção que não a de tornar a aquisição aliciante.
Quem estiver interessado irá licitando por ali mesmo na minha página do FB, logo que o leilão se inicie.
No final ... quem tiver adquirido a peça procederá assim:

Acede a: http://www.acreditar.org.pt/ que é o endereço da ACREDITAR!
Faz um donativo/transferência para o NIB daquela Associação, seguindo as instruções na página inicial ( da qual irá receber um comprovativo ).
Feito o donativo, faz um PDF ou um scanner do comprovativo de transferência e envia para o meu email ( redjan@gmail.com ) combinando nessa altura o modo de entrega da peça adquirida. ( as peças estão neste momento na minha posse ) e para o email da Dra. Margarida Cruz, presidente da direcção da ACREDITAR: mc@acreditar.pt

Qualquer dúvida no processo ? redjan@gmail.com ou .... 93 9909278
Poderão também ligar para a ACREDITAR ( 21 7221150 ) a fim de se inteirarem desta ou outras iniciativas existentes.

Parece-me relativamente fácil e prático. A ideia de tudo isto é gerir a generosidade das pessoas minhas amigas, o interesse de adquirir obras de autores mais ou menos consagrados no mundo artístico mas... CONSAGRADÍSSIMOS em seu modo de ajudar.
E, last but not least .. poderão e deverão remeter à declaração de IRS este modo de solidariedade para com quem necessita.

A ver vamos no que dá !!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

friends & PASSION !


Porque estejas onde estiveres, os amigos são um tesouro .. e a PAIXÃO lembra-te quem és !

quinta-feira, 17 de junho de 2010

vida, de Sophiz ou ninguém mais

Sofhiz sempre amara enrolar os dedos por um escuro e liso cabelo que aprendera a fazer seu secreto lugar, sem as pessoas que não eram pessoas, sem as gentes que sua velha avó lhe ensinara a evitar guardar no lugar dos cheiros e paladares, das mãos que se tocam, trocam e nos envolvem levando-nos... - ' cuidado petiza, não cuides que os sonhos tenham lugar ou hora .. ' - recordava, na voz e em cheiro de pó-de-arroz, na certeza de vida de uma mãe de mãe!
Que pena que naqueles dias, em momentos de olhar para o velho lugar da cadeira de baloiço de Emma, velha avó de vida e sábios conselhos, as respostas teimassem em vestir-se de dúvidas e incertezas, de momentos com tanto nada e pouca gente de valer a pena. Os cabelos, de novo os cabelos, de escuridão e comprido charme, recolhiam Sophiz no temor de acordar e entender que apenas nos idos desenhos de menina de escola saberia a cor do amor, dos dias dados e recebidos, naqueles sorrisos que desde sempre adormeciam a fantasia das palavras cantadas, no temor de acordar e sentir que se perdiam os dedos, se perdia a magia e o labirinto de longos cabelos que eram ela, eram tudo e os sonhos, eram preces, e fugas e pragas ...eram Shopiz em sua vida de menina teimosa de esperança.
Tarde, tarde uma vez mais, por sítios de lado nenhum e coisa apressada, jurara ver rapazinho de cabelos soltos também, vira-lhe a loucura e a leveza, a ignorante certeza, de voar indo e fugindo aos bocados dos dias iguais:
- Mas por onde vais, para onde vais ? ... amaria ter-lhe perguntado!
Mas era tarde, porque tarde era sempre que se esquecia de Emma e suas palavras, sabia-o Sophiz deixada prender .. por outros sem vida ou pouco dela. Tão tarde ... que se esquecera de perguntar.
- A lado nenhum. à vida apenas! ... sonhara ouvir. De resposta à desistida questão.
- A lado nenhum ... respondeu Juande! Juande que não existia senão em cabelos de Sophiz!

guess what ...

Se a democracia é a ' vontade do povo ', o que acontece a ' um povo sem vontade ' ??

sábado, 12 de junho de 2010

arremedos, ou nem tanto !

Mete, no curso em força
Perde, o medo às águas
Que te não assuste a ribeira
Te guie o sonho
Par'onde t'empurra
Olhar mocho de gente passada
Em vida de vida
De desassossegada
Joga as botas, ganha a beira
Que a vida ribeira
Não te saiba
E caiba
Caiba
Ir

sexta-feira, 11 de junho de 2010

concepcion

E na noite e seus silêncios
Em seus espaços
Sem fim
Cumpram os deuses
Existindo eles
O divino desiderato
De lembrar aos homens
Ao Homem
A vida

Em meio a um dia mais, Juanito esperava-o calmo em seu fim, abraçando em antecipação a orgia de liberdade que se concedia aquando solto do mundo. Era segredo seu aquele paraíso inventado, nele fizera crescer as cores que ávido aprendera em tempos de menino. Por ora, absorvia o cheiro da terra e das flores, mirava em êxtase as faces de corpos embrenhados em correrias e em preocupação afogadas, perdidas. Juanito tinha o segredo de as viver, tinha a magia de nelas pegar e suas vidas tomar e tornar em contos de fantasia, nunca esquecera o calor meigo das mãos de Concepcion, sua ama, sua amiga, sua amante e fonte de vida, com ela aprendera os escritos das sebentas dos deuses dos pobres. E da menina liberdade, a Concepcion dedicava seus sorrisos de cúmplice homem livre, a ela clamava os acertos a desvios do divino ... A ela nunca esquecia de amar ..

- Concepcion ... que parte do caminho não entendemos?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

de novo juande ....

O vento quente trazia o fim da tarde, trazia os cheiros do rio, as memórias de tantos dias atrás, dias que eram anos de gente e momentos guardados, vestia-se o vento quente em luz e pássaros livres.
Juande não queria mais, aprendera em canto seu a grandeza das coisas simples que lhe invadiam a alma, com a certeza de que o vento não mentia em sua magia de liberdade, e assim se amavam em cumplicidade sem nós nem laços, de secretos abraços, assim se davam e juntos sonhavam, que grandes fossem, pequenos também, seus passos em imaginados traços, de vidas com fins de tarde.
E Juande olhou o céu, o Céu, o seu e dele, do vento, o Vento, e escreveu-lhe ...

Quente, vento quente
Eloquente
Em vida e mistério
Em nosso Império
Em mim guardado
Em ti voado

E vento, quente vento
Facundo
E fácil o momento
De nosso mundo
Em que me vi
Em ti

E o vento parou e chorou uma chuva quente e Juande sorriu, como sorriam os soldados em dia de descanso na batalha, onde adormeciam meninos sem a cobardia canalha, de quem não sentia o vento, de quem perdera o momento, de entender e olhar, sem medo de amar, os bocados de fim de tarde.

terça-feira, 8 de junho de 2010

soltas sem nexo ...

... apenas estupefacção e alguma apenas. Afinal ... afinal nada!

Em nome, em bom nome da justiça e igualdade, em nome do amor que a todos alcança, em nome disso mesmo, duma justiça profunda sobre a diferença, em nome dos direitos sagrados e inalienáveis das minorias, duma e doutras e doutras, sendo que todas as minorias são iguais e mais nada, em nome disso, vá o senso, o bom e qualquer, e fodam-se, que se fodam, os mesmíssimos direitos das maiorias, essas vacas, essas cabras mimadas que são as maiorias, essas ovelhinhas que balem mas nada valem. E que se foda pensar!
Que conice do caralho meu deus...
Aiiii!!!
Disse dois palavrões e invoquei em vão o nome divino.
Estou fodido! E só ...
Conto como minoria?

Em nome da não perdição do futuro de quem para ele se está a defecar ( deixei os palavrões !!), sai um decreto que manda meninos homens directinhos do 8º para o 10º ano ...
FODA-SE ( opsssss, desculpem ), irra, será que a estupidez e conamolice deste povo não tem limites?
Não, não tem! Eternize-se o ' que se foda ', decrete-se como lema mor da Constituição.
Sócrates apenas sabia que nada sabia. O outro.
Sócrates não faz ideia de que não faz ideia alguma, este ...
Sócráticos pois parecemos!

domingo, 30 de maio de 2010

tristeza

Vestiam-te assim tristeza
De escuro
Pensavam-te sem beleza
Em rosto duro
Perdida em tanta leveza
E erguido o muro
De coisas sós
Das coisas sós

De gente que fomos nós
E tu tristeza, nos avisando
E tu pobreza, nos amarrando
Em coisas vãs
Por coisas vãs
De gente só, de pouco dó
De tanto dó por quem está só

Sem ti, assim demando
Tristeza afinal, quem tu és?
Vestida de escuro, que estranho
E por que me olhas?
Branco puro, acaso vês?
De coisa rara, sem tamanho
Assim tristeza, teu traje escolhas

segunda-feira, 10 de maio de 2010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

cada um ...

' Chinguiça - por sua vez - prometera e cumpria o prometido. Fora ele que tomara a iniciativa de levar Nkolele para a Missão ... '

in ' O Lobolo do Magaíça ' de Orlando M. Pinto

Não conhecia nem um nem outro, Chinguiça ou Nkolele, tão pouco o Largo 7 de Dezembro onde numa mercearia entrei Moçambique adentro, histórias de vida adentro, autores ou personagens. Passava apenas um dia mais, dando serventia de pedreiro, em obra na casa de um verdadeiro amigo irmão. A tarefa de ir buscar ' mini's ' era minha. Trouxe mais, muito mais !!!

Obrigado Orlando, este bocado já ninguém me tira !!! Que história .. e que modo de nos levar lá ... ali a Mamitelane !

segunda-feira, 19 de abril de 2010

feia Marília !


Marilia tinha o aspecto e a cara de um austero professor dos idos anos sessenta, expressões enigmáticas e um corpo que deixava pouco a desejar. Fraca de peito e na atenção que suscitava nos homens, prendada com incómodo buço, portadora de débil estrutura óssea, aprendera desde cedo a trilhar seus mistérios e procurar seu canto sem alardes ou espaventosas chamadas de atenção. Longe ia já sua meninice, carregada de segredos e fantasias, de bailaricos também, e se eles os havia e eram tardes de vida, onde a eterna e transparente Marília fazia as vezes de padre e médica, amante e amiga, onde saltava da chacota de que era alvo para a mão amiga que sabia dar e nunca negava. Marília nascera tarde e a más horas, tanto do dia como da vida, era a oitava de uma família apenas remediada e quisera vir ao mundo a meio de noite de inverno, tanto assim fôra que dera seu primeiro grito no mesmíssimo quarto onde viveria até que casasse. E, mostraria o tempo e o fraco saber dos homens, tal desiderato não se afiguraria de fácil cometimento à pobre, não de espírito próprio, pobre sim de sorte e sítio de vida. Marília, como fácil se infere do exposto, era mais para o feia, carregava pouco jeito no menear, agarrava-se à instrução como náufrago a bote. Sábia pois, ainda que a despeito da indesejada e pouco feminina figura enfrentasse a vida em meio a uma corja de analfabetos, cobardes e estultos vizinhos e conterrâneos. O nome, até esse, escolhido e dado por impulso em noite de telenovela, tornava-a pouco menos que assunto principal da terra, fosse qual fosse o prisma sob o qual arengasse a homenzada, a não ser quando a lascívia imperava e sob o calor tórrido dos verões ou o frio gélido dos invernos trouxesse a cambada a talhe de foice as venturas e desventuras de Carolina, ainda que delas pouco ou nada soubesse, mas cujas curvas e face sem buço, já para não falar de um peito de cortar a respiração e trazer arritmias, descontando um par de pernas talhadas pelo divino e um olhar verde azulado a assomar coisa de estranja, cujas curvas dizia-se, traziam regozijo ao falatório desbragado por entre imperiais e taças de branco. Nesses dias, Marília sentia-se livre e feliz, aprumava a vida, tecia o futuro, nesses mesmos dias Carolina, rica menina linda, amargava os primeiros passos de passarinho ferido ao abandono a que a vida haveria de a votar, por mais que de arabescos rodeasse suas saias e trajares. Se a uma trouxera deus tiques do demo, a outra este enfeitiçara com arte e requinte em trejeitos de boneca de porcelana.

Quis o destino ver chegar à cidade aquela desprotegida e saloia mulher no dia em que se celebrava a chegada de um verão mais, quando o movimento e harmonia das coisas se espreguiçava por entre jardins e esplanadas, por entre o aroma a flores silvestres e ares de praia, daí que pouca ou nenhuma importância pudesse a urbe ter dado ao facto. Acresce, claro está e se bem nos lembramos, que a pessoa não era em si por si factor de deslumbre ou chamamento, o que não invalida que um golpe de fortuna ou de comiseração divina pudesse dar ao momento se não a solenidade de umas boas vindas, ao menos o acenar de gente em sua surpresa a estranhos. Puro engano. Marília, como no dia em que soltara seu primeiro berro, via repetir-se o esgar de enfado e indiferença no rosto de quem por acaso ou distracção resolvia fitá-la. Por arte e ironia do destino, haveria essa mesma cosmopolita turba de experimentar as agruras de sua pouca fé naquilo que deus ensinara como a coisa de amar o próximo. Se à nossa aldeã, de quereres forjados em alma só e guerreira, moldada em certeza de que pouco deus haveria para ajudar, diferença alguma faria semelhante exagero de desapego, já à outrora cobiçada, enaltecida, vazia e envaidecida coqueluche da terra deixada, o assunto poderia causar transtorno na alma e confusão no olhar, trazendo e levando o fugaz brilho a turvo e penoso esgar. Choraria Carolina as dores nunca queixadas de Marília cara de homem, passeariam as travessuras e inocência dos eleitos pelo coração da pobre , porém nobre e em íntimos bocados bem se vê, Marília.

Assim soubéssemos de antemão o trilho de vida de uma e outra, as ruelas e praças, as avenidas e rotundas que a uma e outra a grande cidade e sua vida iriam oferecer em mascaradas orgias de oportunidades, e poderíamos almejar o divino papel de a ambas dar a mão em acaso feito destino.


Sentados longe, na aldeia que as vira partir e em frente à costumeira rodada de jarros de branco, sentados os deuses cúmplices em seu perdido e fantasioso mundo, sentados simplesmente em frente a escrita e a leituras, teciam os improváveis personagens a teia que o futuro de Marília e Carolina haveria de moldar, questionando se à cidade ora nascida em vida de tão fraca e forte gente valeria a pena voltar ...


assim de repente !


foto retirada daqui.

infinito particular


Com a devida vénia ao autor, retirado
daqui.

' Quando surge um momento de silêncio numa conversa entre dois amigos que falam em português, morem eles em Lisboa, Paris, Luanda, Newark, Maputo, Londres, Rio de Janeiro, Joanesburgo, Madrid, Bissau, Luxemburgo, Berlim, Berna ou Cidade da Praia, sejam eles ricos ou pobres, de pele clara ou pele escura, novos ou velhos, de esquerda ou de direita, crentes ou ateus, nativos ou emigrantes, aristocratas ou burgueses, cristãos ou islâmicos, fascistas ou democratas, santos ou assassinos, da cidade ou do campo, do Prog Rock ou do Punk, existem sempre os mesmos 87,3% de probabilidade da conversa ser retomada com a seguinte frase:
- Então, e o nosso Benfica?'

quinta-feira, 15 de abril de 2010

de assafarge ao largo 7 de dezembro ...


Dali, da pequena Assafarge, ali ao Baixo Mondego, sai um caminho, um trilho. De esperança muita e distância sem fim nem horizonte. Sai a pessoa. Uma. Duas. Saiem muitas! E leva-as a mão de deus, qual não vem ao caso, leva-as o vento, levam-nas os dias de chuva, leva-as a força aprendida pela onda do querer. De Assafarge. Até ao fim do mundo se caso for. Pode ser Lisboa. Pode, mas não é. Pode ser Lourenço Marques, se a coisa se der em 1956!

Entro alheado mercearia adentro, encanta-me, sempre me encantou, o aspecto comercial da coisa e arte de venda a retalho, de bens da cesta básica e afins. Dos esfregões, às lâmpadas, passando pelas ' minis' que ali me levaram, essa era a encomenda do mestre d'obras a que dava serventia e ali me mandara em recado. Duas ' mini's' uma preta, outra branca, não era nem racista nem de gosto escuso. A cena passa-se, devo referir, no Largo 7 de Dezembro, que não sei se homenageia a criação do primeiro estado americano, o bloqueio de espanhóis e franceses à Cochinchina ou a descida do Vasco da Gama à segunda do Brasileirão, é pois nesse Largo que pela primeira vez deparo com um livro à venda numa mercearia. Cheirou-me a coisa boa. Como bom é o cheiro da vida simples e das mercearias de bairro. Reconheço a fotografia do autor. Já vi a pessoa em qualquer lado. Já vi sim, e de certeza. Pago as ' mini's encaro o homem merceeiro e solto:

- É o senhor o autor?

Levei quarenta e cinco minutos para sair a entregar a encomenda ao mestre d' obras! As minis.

E conheci quem sai de Assafarge para nos contar uma história. Com cheiros e cores, com gentes que em tempos fomos nós também.

Obrigado Orlando Pinto, senhor de Assafarge, Lourenço Marques e do 7 de Dezembro também !!!

ps: o livro vende-se na Bulhosa do Oeiras Parque ... Agora é convosco!

terça-feira, 13 de abril de 2010

juande papas


Juande Papas era um revolucionário, nascera no meio deles e neles bebera a inspiração dos gritos e a certeza dos dias sem descanso. Vivera no meio do cheiro daquela pólvora quente desde os dias de menino em berço, em braços de sargentos incultos ou generais de corajosa, porém refinada, cultura guerreira. Juande mamara nas ideias loucas dos paraísos justos, brincara de chefe da verdade dos povos, rasgara os joelhos em contos de gente feliz em meio a seus iguais.
Tão logo aprendera a ler, embrenhara-se em históricos relatos de proezas e bravuras, cantadas em hinos secretos ou em romances de liberdade. Juande aprendera a fazer seus os sonhos de todos os homens de alma livre. Era pois um revolucionário, um crente, uma tentação para o diabo que no alto o esperava com suas garras de predador da esperança, com suas mil caras de gente de bem, seus mil vestidos de deusa mulher. Juande, não sendo desleixado, vivia ingénuo e imprevidente, e ainda que não sendo, d'além da revolução, crente, perfilava-se futuro, que não adivinhado, penitente. O cheiro e sabor da pólvora quente que lhe moldara o querer, nele haveriam de resistir até que os dias nascessem sem sol, até que pássaro algum ousasse bater asas rumo ao céu. Assim descobrira que em si seria, esquecendo as diárias negaças do mundo moribundo em seu redor, onde a mentira sem pudor se vestia de coisa séria, linda, quiçá fácil! Onde os revolucionários se esgotavam em enjoados labirintos de reclamações por vida eterna. Burguesa, se possível.
Chegado o seu tempo de surdez e outras pequenezas, resolvera Juande entregar-se a nova missão, qual era a de retornar aos nomes dos guerreiros desaparecidos, dos soldados sobreviventes, dos cobardes escondidos e dos mais que houvessem calcorreado por perto seus quase noventa anos de revolucionário. Morto o sonho, desfeita a esperança, não se iria sem antes balbuciar gaga, tímida, mas intrínseca certeza e guardado sentido de gente e vida. Revolucionário sim, mas não parvo, entenderam? Assim era Juande!
O dia amanhecera com forte chuvada e um calor de derreter vontades ou outras ideias, o caminho até à velha casa dos Papas tornara-se pouco menos que um esboço na lama, salpicado aqui e ali com destroços trazidos pela enxurrada, como se se fizesse fraco anfitrião, e no entanto já ninguém se lembrava de Juande, não precisava a natureza de ajudar com sua revolta chuvosa.
Juande ... velho e esquecido como não ousara sonhar em seus tempos de justiceiro menino, tamborilava pela última vez os seus dedos retortos e empedernidos, entregava-se ao desabafo que soubera guardar em todas as noites que adormecera a lembrar-se do velho cheiro a pólvora, na conquista dos paraísos prometidos por gente adulta que o não ensinara a andar.
E rezava assim o som dos dedos de Juande:

Que burros, mas que burros que são!

sábado, 10 de abril de 2010

macaco, macaquinho

Dos saberes e leis da selva
E dos bichos das fábulas
De ensinamentos esquecidos
Em fracas cabeças cábulas
Onde mudaste homem?
Imitação de gosto fraco
Obra acabada de deus teu
Débil réplica de macaco

Como que catar-se
Fosse catarse
Coisa sã
E em tua saciedade
De fantasmas sem cidade
Nesse teu traje palhaço
Possas pois
Que por pessoa te tomem

Que caminhassem sem parar
Assim rezavam as preces dos cobardes em fuga
Que morressem perdidos, acabassem escondidos
Os olhares em gente acabada
E que matassem os macacos
Todos os macacos, havendo os bons e os maus
Graveolente gente
Que dera cabo de deus

terça-feira, 6 de abril de 2010

liberdade


Pudera chamar-te teu nome
Assim me houvesse
Talvez lembrado
Quem sabe assim
Sem nada mais
Sem delongas
Banais


Ter-te-ia, não duvides
Chamado, claro
Nome de gente
Decretaria
Somente
Que quem não mente
Te saberia

Serias para além dos nomes
E das flores com cor
E da cor do sol e das rosas
E nos nomes, em todos os nomes
Até no teu
O caminho assim
Faria meu

segunda-feira, 5 de abril de 2010

cobardia



Em teu reflexo, em dia meu
Em simples esboço tremido
Fizeste chuva que fosse teu
Segredo que quis escondido

Que de espelho me vestisse
E nos traços me disfarçasse
Como quem vive morrendo
Como quem morre fugindo

E porque às gentes dizendo não
A deuses estendendo a mão
De fraca escusa a tanto pecado
No meu caminho assim negado
De gente que tive
De sonhos
De mim

Morri pois e apenas, bem sei
Em todos e tantos segredos
Que a ti guardei
Desculpa-me
Vida e menino
Tão triste cobardia

sábado, 3 de abril de 2010

manuel, pobre manuel

E mandou a história que se rezassem os nomes
E esqueceu o povo quem eram, de onde vinham
De onde brotava a corja
E porque perecia a alma
Gente feita bicho
Vida parida
De morte
Ferida

E nas galdérias promessas vendidas aos palermas
No fascínio do mundo daquela gente canalha
Ajavardada ganância
Que, vida, te fez puta
Esperto, te fez parvo
Homem, te fez bicho
E rezados os nomes como mandava o missal
Abençoados os porcos, bichos divinos

Perguntava-se Manuel, homem de nada e de terra alguma, se lhe houvera falado assim seu pai, homem sujo e amargo, mas sábio senhor de si ... ' que não te fuja a alma meu filho, antes te percas no vinho, antes te sangrem as mão de trabalho, que seguir gente esta, esta gente do caralho ' ... e Manuel que nunca o entendera, Manuel que agora o queria, para saber, para saber apenas, de onde lhe viera ciência tal, de homem rude e cheiro suado, de homem que foi até ao fim, que bichos não estavam no enterro nem em choros de funeral. Gente apenas. Mulheres de escuro, homens bêbados. Mas gente. Gente sim. Apenas!

E que os ignorantes sejam poupados ao desenlace
Cuidem camaradas d'essa eterna verdade entender
Que a podridão da alcova e fracas riquezas
De dedos no cú e cheiro de mulher fácil
Colhe os espertos, tão espertos
Que morrem de olhos abertos
Com alma e morte
Fingidas

glória

Dos dias que busco ...
Nos tempos que tenho ...
Que caminhos..
E que caminhos ...?
Me trazes ... deus perdido
Quase esquecido
A ti que nunca esqueci
Mulher, ainda menina

Glória, de glória eram os dias e o caminho, dela, eterna glória, as dúvidas também, as faces mil e uma, das pessoas e das vontades, dos braços abertos ao recebê-la e apertá-la, ao esmagar e apartá-la, frágil sim, perdida talvez, largada certa e insegura dos tempos em que o calor fazia os dias, em que sorrir era coisa de gente sem segredos ou fracos esconderijos, sem fugas ao tempo nem ao sabor dos beijos de paixão, sem medo do sol na hora de ir, do escuro das noites fechadas onde estar só, ser-se só, era destino. Eram de glória pois. De Glória também. Dela perdida num sorriso, gasta noutra mentira, querida sem alma, dada sem espaço, ida glória dos tempos em Glória sem tempo, sonhada glória de olhar seu sorriso e entender a meninice impossível em um velho mais, coisa cruzada nos passos corridos em lado de costume seu.

Um dia
Um dia páro...
Perderei o medo
De ter medo
Saberei o sabor
De um beijo que sorri
À glória
De querer apenas
Os dias que busco

terça-feira, 30 de março de 2010

avô José ....

Esteban era homem de bem. De fortes certezas e fraca compleição.
O cair da tarde trouxera a melancolia que enrolava a ida certeza de que no mundo das gentes em volta, os Muñoz eram coisa de ter em conta. Que o conferissem com a Virgem de Guadalupe, aparecida ao índio Juan Diego e explicada em segredo ao seu avô Juan José.

- Um dia cai-vos em cima a maldição do velho, dizia ao ar. Ele lá sabia porque a mereciam.

Juan José fôra na sua juventude um preguiçoso e um mulherengo, sendo que entre as duas actividades dividia os dias e recolhia os proveitos. Filho único em tempos de frio e fome, por opção divina que não do pai, que à sua mãe fizera retirar os ovários por precoce doença e frágil saúde, Juan José soubera aproveitar o coração mole do casal iletrado que o concebera e parira, soubera saborear as sobras que não dividia. Fizera-se um verdadeiro mandrião, de boas falas e amigos muitos, tornara-se um género de alcaide, ainda que de terra de coisa nenhuma. Juan José, à falta de melhor ocupação nos momentos em que tinha as calças para cima, gostava de debitar ciência sua àqueles que fugindo ao calor inclemente se sentavam a seu lado e dos jarros de fresca cerveja.

- Que nos contas Juan?
- Que vos conto?
- Sim, que podes ensinar-nos rapaz, que aviso amigo ?

Juan parou pensativo, enfiou de uma vez a cerveja que aquecia no copo, mirou com desejo as mamas da taberneira, limpou os beiços, arremeteu um ar de intelecto e disparou:

-Cuidado, um dia irão tão depressa para lado algum e talvez se fodam!

O cair da tarde levou os desocupados, não sem antes assentirem que aquele rapaz deveria saber do que falava. Tinha mãos sem calos, pois que esses tinha-os nos joelhos por virtude de tanta prosápia com fim em tardes de alcova.

Esteban não parava de recordar as palavras que ainda escutara ao velho e moribundo avô, que teimara em morrer sem que tivessem de lhe mudar o pijama ou dar a sopa.
Apenas aqueles fins de tarde o assustavam. Levavam para longe as memórias da sua juventude, teimavam em trancafiá-lo naquela lúgubre sala onde apenas velhos como ele morriam à vez, dos sortudos falava, pois que os sobreviventes essa sorte rezavam e pediam.
Olhando à chuva que parecia temer entrar na sala, que se cuspia e pegava nas vidraças, Esteban deixava escorrer lágrimas em segredo, de homem que soubera arrancar-se ao queixume geral e fazer de sua vida espaço de gente feliz e com cheiro próprio. Há muito que perdera o rasto e nome àqueles a que chamava filhos e netos, cuidando que teriam fugido sem despedidas por medo da profecia que não conseguia calar. Esteban amara Juan José em sua austeridade de malandro e velhaco, em sua história de avô de familia. Nunca o percebera, mas era nele que aprendera que os nossos são para guardar.
A tarde dava agora lugar à noite, sem fantasias de estrelas ou romances de sonhos e luas, apenas um frio grande, grande, um frio do caralho como recordava falar em moço.
Vieram apagar as luzes depois do jantar, Esteban teve de sair e voltar a casa, deixando os amigos desconhecidos descansar umas horas em paz.
Adormeceu na mesma cadeira de sempre, baloiçando de olhos abertos, revivendo os entes queridos que não havia em lugar algum. Agarrou no bolso o velho canivete herdado, fechou os olhos e balbuciou:

- Deixa-os Avô José .. um dia ainda se fodem !

domingo, 21 de março de 2010

a máscara


Nadja. Parada Nadja, perdida no tempo desentendido, em língua estranha e cores sem alinho, que fazes pobre e perdida, por onde ficou teu olhar daqueles tempos, eras tu aquela menina, és tu esta mulher, quem te fez assim e te trouxe prometida em viagem ao céu dos homens sem deus?

Que fujam os homens
E escondam os peixes

Que morra cedo quem a deus teme, temei, que fique só quem o vazio ama, ficai, mas que não esqueçam as gentes a imperfeição dos olhares, não esqueçais pois ..

Que olhando-te assim
Entendo
Olhando-me assim
Acusas
Nadja de estar perdida
O mundo de estar esquecido
Em nudez iluminada
Em olhos de ninguém
Por onde foge o homem deus

Volta Nadja, são teus estes bocados, é tua terra esta, é gente apenas esquecida, de quem eras na partida.

E perdoa sem mágoa
O dia
Onde morremos
Em tua máscara

Imagem retirada de http://www.rabiscuss.blogspot.com/

sábado, 20 de março de 2010

vazio do medo

E se da questão
O âmago
Apenas busca
O vazio

Quando o medo
Somente ele
Te tolhe
T'encolhe

Perdeste o norte
E o sentido
De ti
Sem ti

Pobre estrela só
Tanta é a luz
Que cega
Te cega
Pobre estrela cega
E só

quarta-feira, 17 de março de 2010

william james macneven


Dia de sol inesperado, depois de uma semana de muita água a incomodar uma Nova Iorque que ainda assim é Nova Iorque. Chegado na véspera, eu! Não consigo fugir ao do costume, chego via WTC e vou directo ao Essex, parece que tenho saudades dos hispânicos, dos pequenos almoços escolhidos e pedidos em género de Wall Street, coisas desejadas, gritadas para o ar pelo meu amigo a quem nem o nome sei, já os bigodes e cabelo grisalho guardo sempre que saio num ' até breve ' falado para dentro, servidas e pagas à eterna morena com ar de chilena, seja lá que ar tenham as chilenas, pode até ser boliviana, caraquenha, sei lá, nativa do sul por certo, que de americana nada tem, nem rabo, nem ar deslavado.
Saio à procura de uma encomenda para um amigo, a NY tem de se ir em segredo senão não há como escapar a um ' podias trazer-me só isto ' e ' isto ' pode ser tudo, e tudo é tudo! Desta vez apenas um jogo para computador, coisa de colecção no entanto, de não se encontrar às primeiras, desço a Fulton, sigo até ao porto, que ' a couple of Game Stop Shops ' havia de encontrar de certeza, coisa bem explicadinha por polícia dali, daqueles iguaizinhos aos das séries da FOX, camisa azul, pistola no coldre e ar disponível. Azar. Não encontrei. Ziguezagueei no regresso, subi por outro lado, atravessei uns quantos ' Walk / Don't Walk ' e nadica na mesma.
Trinta minutos já lá iam na busca, já me apetecia fumar, foi só o tempo de encontrar um Starbucks, entrar e sair de balde cheio e escolher onde me encostar. E foi ali mesmo, de frente para o ' JR Electronics ', apreciando o sol e as pessoas, e que pessoas tem NY meus senhores, tem-nas todas, desatei a imaginar vidas, queria sentar-me ali o dia todo e prometo que vos trazia um conto. Encostado ao gradeamento da St. Paul's Church, olho pela enésima vez para a estátua daquele homem, sempre ali, sempre impante em seu jardim, personagem por certo, quando não, porque estátua lhe haveriam de erigir? Por entre goles e fumaças, entro vida adentro do Dr. MacNeven. Assim mesmo. Doutor. Breve lhe conheço a origem, irlandês, um de tantos que hoje celebrarão o St. Patricks e darão a NY as cores verde e laranja tão deles e que tão bem lhes fica. William James, fico a saber. Como também que saiu da sua Irlanda por convicções, coisas de deus, e por lá pela ilha são de rigor no que se venera, o mesmo deus mas de modos diferentes, e se de modos outros sai castigo e a coisa, reza a história, dura e dura, e assim se reza à bulha mas com crença. De tal modo que já no século dezasseis o nosso Guilherme Jaime se fizera médico em Viena e por vias e ajudas de um tio nobre que também pelo seu catolicismo em sitio errado se vira forçado à debanda. E, depois de preso quatro anos, viu no exílio sua sorte, ainda demandou a Paris na esperança napoleónica de uma ajuda francesa à sua causa de deus cristão católico, ' mais rien fait '... e chegar à América foi questão de tempo e ventos marítimos, chegaria a quatro de Julho, vinte e nove anos depois dos americanos que o recebiam de braços abertos terem declarado sua independência. E por lá continuou sua vida de sonhos e de homem, por lá ensinou e curou, aprendeu e apreendeu o aroma de um mundo do mundo. E se bem o deve ter feito, pois que a estátua ali atrás de mim não era comenda de encomenda por certo, era honra de quem veio e trouxe consigo um género de alma com que alguns nascem, feita de sonho e honradez.
Acabado o café, apagado o cigarro, segui Broadway acima em busca da Game Stop que ali me levara, não sem antes prometer ao Dr. MacNeven que voltaria, e que voltaria sabendo dele mais do que os dizeres na lápide me haviam trazido naqueles minutos ao sol.
William, quando voltar a Nova Iorque, passo a fazer-te um pouco mais de companhia. E a aprender contigo um pouco do sonho dos homens. Mesmo que chova!

sábado, 13 de março de 2010

velho

Temo-te senso
Pouco
Vazio

Fitei um velho
Corpo


A deus pedi
Alma d'ele
Em pó

Que a Ele volta
D'Ele veio
D'Ele é

Não queiras
Perdão
Não temas
Solidão
Em um velho
Corpo

Cristal

E caminhando descalço nas águas deslumbrava o velho sorrindo em seus dentes nenhuns, olhado louco pelos pares da aldeia fantasma que o vira crescer e ir-se a gente, que o vira partir em todas as direcções para os lugares de ninguém, e caminhava agora o velho e ia descalço, e sorria teimoso como se se pudesse lembrar das coisas que morriam cedo ...

- De que tens saudades velho?
.....
- De que tens medo ou memória?
.....
Porque não pára tua história? E porque sorris esquecido, gozas ainda abandonado, como não esqueces teu nome, nem os sonhos proibidos? Como ousas caminhar...

E nas águas imaginadas, no rio de lágrimas de saudades do colo de mãe, assim os deuses se vissem vividos, assim os deuses se vissem rezados, e caminhando o velho perguntava ao sonho, de onde surges mulher, tens nome e afinal qual é...

Não ficou para ouvir, não parou de caminhar, não ousou ter a certeza de ser Cristal por ali.
E de Cristal era aquele olhar. Porque Cristal em tempos fôra coisa de ser única!
E caminhando descalço pois o velho, sobre as águas, sorria aos dias em que aprendera a andar!

quarta-feira, 10 de março de 2010

cinco minutos ...

Manuel pegou no corpo e saiu, cinco minutos o separavam de si, cinco minutos o trariam de volta a si, Manuel olhou o tempo como não fazia há muito, como se contasse sem passar, como se passasse apenas parado, Manuel não o via nem grande nem longe, nem ao tempo nem a ele Manuel, cinco minutos apenas, trinta anos apenas, passados sem contar, contados ao passar, do sabor dele mesmo, de Manuel ido e lembrado, de tempo tão passado, e o tempo passou, passaram os anos e os minutos, e tudo continuou, o passado ali a passar, em minutos mais que cinco, em anos apenas trinta. Fazia frio quando o tempo parava. Esquecia o tempo em que o frio ficava. Manuel. Trinta anos depois. Estás igual sabias? As mesmas sardas. Os mesmos olhos verdes. O tempo não passa.
Em cinco minutos!