sexta-feira, 20 de maio de 2011

o intrínseco de Manolo



Debaixo do cipreste, Manolo indagava-se se seria perscrutável a prescritibilidade das coisas da honra. Havia muito que o apodavam de boi e o facto era sim que a dor de adorno assim se revelava em sua débil moral, trazendo exangue sua alma de macho. Maldita terriola que gente de tomates esfola, em sua pequenez, em gula tola de cego cerco a ameia alheia.
A conífera assistia impávida em sua vegetalidade, presença fantasmeada que nada poderia testemunhar em bem à verdade, pois longínquo estava o facto, em tempo e local, creditava-lhe o deus terreno o destoado papel de protector solar do corno. Solar e amigo, pois ainda que de ombros falha, não se coibia Manolo de a envolver em prantos e desencantos por desdita cruel da ávida turba. Impávido ele, o cipreste, acolhia o tolhido e leso adornado, falho de tesões em seu talhão caseiro. Corno fosse, que companhia trouxe a tardes infindas e improfícuas, horas de abandono no monte a monte para gentes idas ou em debandada. Bendito sejas Manolo, tu e teu par, se tal é o preço para não morrer só, pensava o velho Cupressus.


.... Dobrada que estava a quantidade de falatório entre os casados Manolo e Maria, debandou aquele rua afora, e se as ruas eram parcas e poucas em distâncias, em menos de um fósforo adentrava o tasco de Ti Tonho Cruz, repleto de cheiros de pouca recomendação, moscas residentes e imbecis encartados.

- Bom dia Ti Cruz, é meia de branco.


... - Tás bem ? ... ouviu gritar.
- Saio já, saio já ... retrucou embaraçado, atordoado pela queda abrupta dos altos a que se transportara, atarantado pelo tamanho da coisa, fosse ela a preocupação de Maria ou a demora da purga cutânea.

Ensaboado como não tinha memória, enxuto agora, olhou-se ao espelho e retorceu nariz e bigode ao desenho embaciado de si mesmo. Puxou da navalha e de um trago aviou a bigodaça de cidadão, figura que se lembrava de ostentar desde os tempos de fim da tropa, passou nívea à falta de melhor, penteou-se com empenho e desvelo e rumou à cómoda de seus poucos trapos, onde por certo encontraria algo à altura de vestir sua nova alma e gente.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

bailando


Está calor, imenso calor naquela tarde. Naquela sala. Baila-se compassado, ritmado, toca-se o corpo, um corpo gasto que não se deixa acabar. Nem pelo calor, que é tanto naquela tarde, nem pelos dias assim tão iguais em tantas tardes de passos dançados em busca de vida menina.

- Que calor meu Deus, pensa de si para si Maria José, Mizé como é tratada, que calor meu Deus, pensa enquanto baila e não troca um passo, enquanto agarra e conduz Mário, Márinho como lhe chamam.
- Que calor, caralho, que calorão do caralho, logo hoje dia de baile, pensa Mário, ou Márinho, ou Marito, como teimam em adorná-lo, deixa-se ir em trejeitos de bailador, olha de relance o balcão e suspira por uma pausa, necessária, que calor imperial, que necessidade intemporal, o corpo de Maria, ou de outras Marias, a sede traiçoeira, amiga afinal de tanta tarde com os homens, mas ali não conta, estica os dedos em fantasias de tango, e dança, dança vida afora, como quem se busca perdido em terra que já esqueceu.

Toca uma música sem lugar, misturam-se os ritmos, cantados, sofridos e dançados, sintetizados, acompanha em voz o rapaz novo encarregado de dar o mote, a dica, a dança.
Poisam quedas mas vivas as garrafas, tanta cor e tanto álcool, doce, forte, amargo, traiçoeiro, fresco a jorrar de sujos barris, indiferente ao calor, que é tanto e tão desejado, tão esquecido do sabor dos corpos que suam, dançam e se entreolham, se querem sem segredo, se pedem oferecendo-se.

Dança Idalina já meio cega, dança surda e sem enganos, abraça-a e fá-la voar Lurdes, eterna amiga de sempre, de zangas e comadrios, de namoros disputados, de gasto de vida, Lurdes é sua, como é seu o seu cheiro, sua pele velha e gasta, como nossas são as flores que cuidámos uma vida e morrendo as cuidámos vivas.

Está calor, como já alguém referiu, um imenso calor. Um calor do caralho, de gente que não se deixa morrer.