quinta-feira, 19 de maio de 2011
bailando
Está calor, imenso calor naquela tarde. Naquela sala. Baila-se compassado, ritmado, toca-se o corpo, um corpo gasto que não se deixa acabar. Nem pelo calor, que é tanto naquela tarde, nem pelos dias assim tão iguais em tantas tardes de passos dançados em busca de vida menina.
- Que calor meu Deus, pensa de si para si Maria José, Mizé como é tratada, que calor meu Deus, pensa enquanto baila e não troca um passo, enquanto agarra e conduz Mário, Márinho como lhe chamam.
- Que calor, caralho, que calorão do caralho, logo hoje dia de baile, pensa Mário, ou Márinho, ou Marito, como teimam em adorná-lo, deixa-se ir em trejeitos de bailador, olha de relance o balcão e suspira por uma pausa, necessária, que calor imperial, que necessidade intemporal, o corpo de Maria, ou de outras Marias, a sede traiçoeira, amiga afinal de tanta tarde com os homens, mas ali não conta, estica os dedos em fantasias de tango, e dança, dança vida afora, como quem se busca perdido em terra que já esqueceu.
Toca uma música sem lugar, misturam-se os ritmos, cantados, sofridos e dançados, sintetizados, acompanha em voz o rapaz novo encarregado de dar o mote, a dica, a dança.
Poisam quedas mas vivas as garrafas, tanta cor e tanto álcool, doce, forte, amargo, traiçoeiro, fresco a jorrar de sujos barris, indiferente ao calor, que é tanto e tão desejado, tão esquecido do sabor dos corpos que suam, dançam e se entreolham, se querem sem segredo, se pedem oferecendo-se.
Dança Idalina já meio cega, dança surda e sem enganos, abraça-a e fá-la voar Lurdes, eterna amiga de sempre, de zangas e comadrios, de namoros disputados, de gasto de vida, Lurdes é sua, como é seu o seu cheiro, sua pele velha e gasta, como nossas são as flores que cuidámos uma vida e morrendo as cuidámos vivas.
Está calor, como já alguém referiu, um imenso calor. Um calor do caralho, de gente que não se deixa morrer.
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