segunda-feira, 26 de abril de 2010

cada um ...

' Chinguiça - por sua vez - prometera e cumpria o prometido. Fora ele que tomara a iniciativa de levar Nkolele para a Missão ... '

in ' O Lobolo do Magaíça ' de Orlando M. Pinto

Não conhecia nem um nem outro, Chinguiça ou Nkolele, tão pouco o Largo 7 de Dezembro onde numa mercearia entrei Moçambique adentro, histórias de vida adentro, autores ou personagens. Passava apenas um dia mais, dando serventia de pedreiro, em obra na casa de um verdadeiro amigo irmão. A tarefa de ir buscar ' mini's ' era minha. Trouxe mais, muito mais !!!

Obrigado Orlando, este bocado já ninguém me tira !!! Que história .. e que modo de nos levar lá ... ali a Mamitelane !

segunda-feira, 19 de abril de 2010

feia Marília !


Marilia tinha o aspecto e a cara de um austero professor dos idos anos sessenta, expressões enigmáticas e um corpo que deixava pouco a desejar. Fraca de peito e na atenção que suscitava nos homens, prendada com incómodo buço, portadora de débil estrutura óssea, aprendera desde cedo a trilhar seus mistérios e procurar seu canto sem alardes ou espaventosas chamadas de atenção. Longe ia já sua meninice, carregada de segredos e fantasias, de bailaricos também, e se eles os havia e eram tardes de vida, onde a eterna e transparente Marília fazia as vezes de padre e médica, amante e amiga, onde saltava da chacota de que era alvo para a mão amiga que sabia dar e nunca negava. Marília nascera tarde e a más horas, tanto do dia como da vida, era a oitava de uma família apenas remediada e quisera vir ao mundo a meio de noite de inverno, tanto assim fôra que dera seu primeiro grito no mesmíssimo quarto onde viveria até que casasse. E, mostraria o tempo e o fraco saber dos homens, tal desiderato não se afiguraria de fácil cometimento à pobre, não de espírito próprio, pobre sim de sorte e sítio de vida. Marília, como fácil se infere do exposto, era mais para o feia, carregava pouco jeito no menear, agarrava-se à instrução como náufrago a bote. Sábia pois, ainda que a despeito da indesejada e pouco feminina figura enfrentasse a vida em meio a uma corja de analfabetos, cobardes e estultos vizinhos e conterrâneos. O nome, até esse, escolhido e dado por impulso em noite de telenovela, tornava-a pouco menos que assunto principal da terra, fosse qual fosse o prisma sob o qual arengasse a homenzada, a não ser quando a lascívia imperava e sob o calor tórrido dos verões ou o frio gélido dos invernos trouxesse a cambada a talhe de foice as venturas e desventuras de Carolina, ainda que delas pouco ou nada soubesse, mas cujas curvas e face sem buço, já para não falar de um peito de cortar a respiração e trazer arritmias, descontando um par de pernas talhadas pelo divino e um olhar verde azulado a assomar coisa de estranja, cujas curvas dizia-se, traziam regozijo ao falatório desbragado por entre imperiais e taças de branco. Nesses dias, Marília sentia-se livre e feliz, aprumava a vida, tecia o futuro, nesses mesmos dias Carolina, rica menina linda, amargava os primeiros passos de passarinho ferido ao abandono a que a vida haveria de a votar, por mais que de arabescos rodeasse suas saias e trajares. Se a uma trouxera deus tiques do demo, a outra este enfeitiçara com arte e requinte em trejeitos de boneca de porcelana.

Quis o destino ver chegar à cidade aquela desprotegida e saloia mulher no dia em que se celebrava a chegada de um verão mais, quando o movimento e harmonia das coisas se espreguiçava por entre jardins e esplanadas, por entre o aroma a flores silvestres e ares de praia, daí que pouca ou nenhuma importância pudesse a urbe ter dado ao facto. Acresce, claro está e se bem nos lembramos, que a pessoa não era em si por si factor de deslumbre ou chamamento, o que não invalida que um golpe de fortuna ou de comiseração divina pudesse dar ao momento se não a solenidade de umas boas vindas, ao menos o acenar de gente em sua surpresa a estranhos. Puro engano. Marília, como no dia em que soltara seu primeiro berro, via repetir-se o esgar de enfado e indiferença no rosto de quem por acaso ou distracção resolvia fitá-la. Por arte e ironia do destino, haveria essa mesma cosmopolita turba de experimentar as agruras de sua pouca fé naquilo que deus ensinara como a coisa de amar o próximo. Se à nossa aldeã, de quereres forjados em alma só e guerreira, moldada em certeza de que pouco deus haveria para ajudar, diferença alguma faria semelhante exagero de desapego, já à outrora cobiçada, enaltecida, vazia e envaidecida coqueluche da terra deixada, o assunto poderia causar transtorno na alma e confusão no olhar, trazendo e levando o fugaz brilho a turvo e penoso esgar. Choraria Carolina as dores nunca queixadas de Marília cara de homem, passeariam as travessuras e inocência dos eleitos pelo coração da pobre , porém nobre e em íntimos bocados bem se vê, Marília.

Assim soubéssemos de antemão o trilho de vida de uma e outra, as ruelas e praças, as avenidas e rotundas que a uma e outra a grande cidade e sua vida iriam oferecer em mascaradas orgias de oportunidades, e poderíamos almejar o divino papel de a ambas dar a mão em acaso feito destino.


Sentados longe, na aldeia que as vira partir e em frente à costumeira rodada de jarros de branco, sentados os deuses cúmplices em seu perdido e fantasioso mundo, sentados simplesmente em frente a escrita e a leituras, teciam os improváveis personagens a teia que o futuro de Marília e Carolina haveria de moldar, questionando se à cidade ora nascida em vida de tão fraca e forte gente valeria a pena voltar ...


assim de repente !


foto retirada daqui.

infinito particular


Com a devida vénia ao autor, retirado
daqui.

' Quando surge um momento de silêncio numa conversa entre dois amigos que falam em português, morem eles em Lisboa, Paris, Luanda, Newark, Maputo, Londres, Rio de Janeiro, Joanesburgo, Madrid, Bissau, Luxemburgo, Berlim, Berna ou Cidade da Praia, sejam eles ricos ou pobres, de pele clara ou pele escura, novos ou velhos, de esquerda ou de direita, crentes ou ateus, nativos ou emigrantes, aristocratas ou burgueses, cristãos ou islâmicos, fascistas ou democratas, santos ou assassinos, da cidade ou do campo, do Prog Rock ou do Punk, existem sempre os mesmos 87,3% de probabilidade da conversa ser retomada com a seguinte frase:
- Então, e o nosso Benfica?'

quinta-feira, 15 de abril de 2010

de assafarge ao largo 7 de dezembro ...


Dali, da pequena Assafarge, ali ao Baixo Mondego, sai um caminho, um trilho. De esperança muita e distância sem fim nem horizonte. Sai a pessoa. Uma. Duas. Saiem muitas! E leva-as a mão de deus, qual não vem ao caso, leva-as o vento, levam-nas os dias de chuva, leva-as a força aprendida pela onda do querer. De Assafarge. Até ao fim do mundo se caso for. Pode ser Lisboa. Pode, mas não é. Pode ser Lourenço Marques, se a coisa se der em 1956!

Entro alheado mercearia adentro, encanta-me, sempre me encantou, o aspecto comercial da coisa e arte de venda a retalho, de bens da cesta básica e afins. Dos esfregões, às lâmpadas, passando pelas ' minis' que ali me levaram, essa era a encomenda do mestre d'obras a que dava serventia e ali me mandara em recado. Duas ' mini's' uma preta, outra branca, não era nem racista nem de gosto escuso. A cena passa-se, devo referir, no Largo 7 de Dezembro, que não sei se homenageia a criação do primeiro estado americano, o bloqueio de espanhóis e franceses à Cochinchina ou a descida do Vasco da Gama à segunda do Brasileirão, é pois nesse Largo que pela primeira vez deparo com um livro à venda numa mercearia. Cheirou-me a coisa boa. Como bom é o cheiro da vida simples e das mercearias de bairro. Reconheço a fotografia do autor. Já vi a pessoa em qualquer lado. Já vi sim, e de certeza. Pago as ' mini's encaro o homem merceeiro e solto:

- É o senhor o autor?

Levei quarenta e cinco minutos para sair a entregar a encomenda ao mestre d' obras! As minis.

E conheci quem sai de Assafarge para nos contar uma história. Com cheiros e cores, com gentes que em tempos fomos nós também.

Obrigado Orlando Pinto, senhor de Assafarge, Lourenço Marques e do 7 de Dezembro também !!!

ps: o livro vende-se na Bulhosa do Oeiras Parque ... Agora é convosco!

terça-feira, 13 de abril de 2010

juande papas


Juande Papas era um revolucionário, nascera no meio deles e neles bebera a inspiração dos gritos e a certeza dos dias sem descanso. Vivera no meio do cheiro daquela pólvora quente desde os dias de menino em berço, em braços de sargentos incultos ou generais de corajosa, porém refinada, cultura guerreira. Juande mamara nas ideias loucas dos paraísos justos, brincara de chefe da verdade dos povos, rasgara os joelhos em contos de gente feliz em meio a seus iguais.
Tão logo aprendera a ler, embrenhara-se em históricos relatos de proezas e bravuras, cantadas em hinos secretos ou em romances de liberdade. Juande aprendera a fazer seus os sonhos de todos os homens de alma livre. Era pois um revolucionário, um crente, uma tentação para o diabo que no alto o esperava com suas garras de predador da esperança, com suas mil caras de gente de bem, seus mil vestidos de deusa mulher. Juande, não sendo desleixado, vivia ingénuo e imprevidente, e ainda que não sendo, d'além da revolução, crente, perfilava-se futuro, que não adivinhado, penitente. O cheiro e sabor da pólvora quente que lhe moldara o querer, nele haveriam de resistir até que os dias nascessem sem sol, até que pássaro algum ousasse bater asas rumo ao céu. Assim descobrira que em si seria, esquecendo as diárias negaças do mundo moribundo em seu redor, onde a mentira sem pudor se vestia de coisa séria, linda, quiçá fácil! Onde os revolucionários se esgotavam em enjoados labirintos de reclamações por vida eterna. Burguesa, se possível.
Chegado o seu tempo de surdez e outras pequenezas, resolvera Juande entregar-se a nova missão, qual era a de retornar aos nomes dos guerreiros desaparecidos, dos soldados sobreviventes, dos cobardes escondidos e dos mais que houvessem calcorreado por perto seus quase noventa anos de revolucionário. Morto o sonho, desfeita a esperança, não se iria sem antes balbuciar gaga, tímida, mas intrínseca certeza e guardado sentido de gente e vida. Revolucionário sim, mas não parvo, entenderam? Assim era Juande!
O dia amanhecera com forte chuvada e um calor de derreter vontades ou outras ideias, o caminho até à velha casa dos Papas tornara-se pouco menos que um esboço na lama, salpicado aqui e ali com destroços trazidos pela enxurrada, como se se fizesse fraco anfitrião, e no entanto já ninguém se lembrava de Juande, não precisava a natureza de ajudar com sua revolta chuvosa.
Juande ... velho e esquecido como não ousara sonhar em seus tempos de justiceiro menino, tamborilava pela última vez os seus dedos retortos e empedernidos, entregava-se ao desabafo que soubera guardar em todas as noites que adormecera a lembrar-se do velho cheiro a pólvora, na conquista dos paraísos prometidos por gente adulta que o não ensinara a andar.
E rezava assim o som dos dedos de Juande:

Que burros, mas que burros que são!

sábado, 10 de abril de 2010

macaco, macaquinho

Dos saberes e leis da selva
E dos bichos das fábulas
De ensinamentos esquecidos
Em fracas cabeças cábulas
Onde mudaste homem?
Imitação de gosto fraco
Obra acabada de deus teu
Débil réplica de macaco

Como que catar-se
Fosse catarse
Coisa sã
E em tua saciedade
De fantasmas sem cidade
Nesse teu traje palhaço
Possas pois
Que por pessoa te tomem

Que caminhassem sem parar
Assim rezavam as preces dos cobardes em fuga
Que morressem perdidos, acabassem escondidos
Os olhares em gente acabada
E que matassem os macacos
Todos os macacos, havendo os bons e os maus
Graveolente gente
Que dera cabo de deus

terça-feira, 6 de abril de 2010

liberdade


Pudera chamar-te teu nome
Assim me houvesse
Talvez lembrado
Quem sabe assim
Sem nada mais
Sem delongas
Banais


Ter-te-ia, não duvides
Chamado, claro
Nome de gente
Decretaria
Somente
Que quem não mente
Te saberia

Serias para além dos nomes
E das flores com cor
E da cor do sol e das rosas
E nos nomes, em todos os nomes
Até no teu
O caminho assim
Faria meu

segunda-feira, 5 de abril de 2010

cobardia



Em teu reflexo, em dia meu
Em simples esboço tremido
Fizeste chuva que fosse teu
Segredo que quis escondido

Que de espelho me vestisse
E nos traços me disfarçasse
Como quem vive morrendo
Como quem morre fugindo

E porque às gentes dizendo não
A deuses estendendo a mão
De fraca escusa a tanto pecado
No meu caminho assim negado
De gente que tive
De sonhos
De mim

Morri pois e apenas, bem sei
Em todos e tantos segredos
Que a ti guardei
Desculpa-me
Vida e menino
Tão triste cobardia

sábado, 3 de abril de 2010

manuel, pobre manuel

E mandou a história que se rezassem os nomes
E esqueceu o povo quem eram, de onde vinham
De onde brotava a corja
E porque perecia a alma
Gente feita bicho
Vida parida
De morte
Ferida

E nas galdérias promessas vendidas aos palermas
No fascínio do mundo daquela gente canalha
Ajavardada ganância
Que, vida, te fez puta
Esperto, te fez parvo
Homem, te fez bicho
E rezados os nomes como mandava o missal
Abençoados os porcos, bichos divinos

Perguntava-se Manuel, homem de nada e de terra alguma, se lhe houvera falado assim seu pai, homem sujo e amargo, mas sábio senhor de si ... ' que não te fuja a alma meu filho, antes te percas no vinho, antes te sangrem as mão de trabalho, que seguir gente esta, esta gente do caralho ' ... e Manuel que nunca o entendera, Manuel que agora o queria, para saber, para saber apenas, de onde lhe viera ciência tal, de homem rude e cheiro suado, de homem que foi até ao fim, que bichos não estavam no enterro nem em choros de funeral. Gente apenas. Mulheres de escuro, homens bêbados. Mas gente. Gente sim. Apenas!

E que os ignorantes sejam poupados ao desenlace
Cuidem camaradas d'essa eterna verdade entender
Que a podridão da alcova e fracas riquezas
De dedos no cú e cheiro de mulher fácil
Colhe os espertos, tão espertos
Que morrem de olhos abertos
Com alma e morte
Fingidas

glória

Dos dias que busco ...
Nos tempos que tenho ...
Que caminhos..
E que caminhos ...?
Me trazes ... deus perdido
Quase esquecido
A ti que nunca esqueci
Mulher, ainda menina

Glória, de glória eram os dias e o caminho, dela, eterna glória, as dúvidas também, as faces mil e uma, das pessoas e das vontades, dos braços abertos ao recebê-la e apertá-la, ao esmagar e apartá-la, frágil sim, perdida talvez, largada certa e insegura dos tempos em que o calor fazia os dias, em que sorrir era coisa de gente sem segredos ou fracos esconderijos, sem fugas ao tempo nem ao sabor dos beijos de paixão, sem medo do sol na hora de ir, do escuro das noites fechadas onde estar só, ser-se só, era destino. Eram de glória pois. De Glória também. Dela perdida num sorriso, gasta noutra mentira, querida sem alma, dada sem espaço, ida glória dos tempos em Glória sem tempo, sonhada glória de olhar seu sorriso e entender a meninice impossível em um velho mais, coisa cruzada nos passos corridos em lado de costume seu.

Um dia
Um dia páro...
Perderei o medo
De ter medo
Saberei o sabor
De um beijo que sorri
À glória
De querer apenas
Os dias que busco