E não esqueças homenzinho
Em teu cagar vive o segredo
Como fácil parece o caminho
À fraca vida, dar-lhe degredo
Do alto de teu eu podes cagar
Em gente e coisas de verdade
Porque te escondes num altar
De deuses sem nome ou idade
De alto cagas, em ti e em vida
De baixo suspiras as mentiras
E mente de caca bem provida
Que nem sonharas ou sentiras
Assim teu deus não justo fosse
E tanto cagar visse, castigasse
E da náusea que não te trouxe
Fizesse seu fim e não te amasse
E que sentisses o sangue e dor
Nesse olhar de gente desigual
Soubesses assim pois do valor
De uma vida simples e mortal
Aprende no sol, chuva e vento
Os dias de mundo com pessoas
Vai ao fundo e vive o momento
És filho d'Ele quando assim voas
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
domingo, 28 de dezembro de 2008
portas!
BANG !!!
- Foda-se ... esqueci-me !
- De quê ?
- Da janela, da p*** da janela aberta .. e de não dizer palavrões. Tenho de me lembrar ..
- De quê ? De fechar as janelas ?
- Não car*******, de não dizer palavrões quando elas batem com estrondo.
- Porquê ? Que te importa isso?
- As janelas abertas?
- Não .. o palavreado !
- Qual palavreado?
- O posterior ao embate janelar ...
- Distraiem-me.
- Os estrondos?
- Não, as janelas que se fecham e se abrem ...
- Como as portas?
- Foda-se .... que portas, de que merda de portas estás a falar?
- Das que se abrem no fechar de janelas .... disseste ' foda-se' ? De novo ?
- De novo como ?
BANG...
- Ai ... outra vez ..... car....amba !!
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
janelas ...
O comboio seguia em seu ritmo cadenciado, num repetir de ' pouca terra, pouca terra ' que o levava por entre vales e pontes, rios e montanhas, numa paisagem mais própria de contos de Natal do que de ligação da cidade à aldeia. Corria a manhã, um sol de Inverno entrava carruagens adentro, dando ao ambiente uma agradável sensação de conforto, as pessoas por ali pareciam ter tudo para ser felizes naquele dia de Ano Novo. E no entanto a quietude e o silêncio carregado nos semblantes fazia crer que da vida nova acabada de chegar pouco de bom se devia esperar.
Manuel, robusto rapagão na casa dos vinte e poucos, seguia mudo e quedo, cego pela raiva de se saber trocado por António nos favores de Maria. Olhava a janela com cara de carneiro mal morto, esmagado pelo peso dos dias que aí vinham e que de bom por certo nada lhe trariam ao coração despedaçado. Três bancos atrás, coisa do destino e de Belzebu, António repetia a cara de parvo pregada aos vidros, cego de paixão pela rapariga que agora se fazia e dizia sua, o seu silêncio era mais de proteger o azar de que tudo não passase de um sonho. Mais atrás ainda, numa coincidência de pedir meças às previsões das ciganas, sentava-se Maria, a trocadora, alheia a tudo e todos, cega de remorsos por um ter abandonado e outro se preparar para desenganar um dia. Espetara as vistas lá para fora, não tossia nem mugia, o estado de espírito a tal a obrigava. A seu lado, tão perto e tão longe, Francisco, jovem de familia com nome na terra, seguia cego em sua ambição de tornar às origens e se ver reconhecido como obra divina, arquitectava carreira no poder, pondo e dispondo de velhos e novos da sua infância, mirava os vales e pontes sem nada ver em seu olhar vazio e parado. No lado oposto, Idalina, seguia cega em sua dor, a visita à cidade para enterrar prima chegada dera-lhe cabo das poucas forças que restavam em seus mais de oitenta e muitos, ao certo nem ela sabia precisar. De nada lhe valia a companhia de sua irmã Julia, cega de ciúmes por menor papel que lhe coubera em enterro de gente da capital, com a cara virada ao acaso para lado nenhum. A chegada do revisor foi pois saudada com a indiferença de tanta ausência naquela carruagem, naquelas vidas também., e no entanto a mesma indiferença com que automáticamente cumpria sua missão o moço, José de sua graça, cego que estava de saudades de Rosilene, mocetona de porte nordestino que o presenteava com nunca imaginados esperneares, de cada vez que tinha a sorte de com ela se cruzar em dia de estada prolongada na cidade. Imaginava-a em seus dias de espera, com seu fervor de cega devoção a Deus recompensador, contando os dias para o ter de volta,. Rosilene, essa coitada, cega sim mas por dinheiro, lá ia andando e alternando por entre mesas e gorgetas, que de comboios nem a cor lhes conhecia, afinal havia chegado de avião e assim tencionava voltar.
À passagem por um prado de um verde sem fim, o aroma da terra húmida, trazida por ventos de sol intruso, inundou aquele comboio entrando por tanta janela ocupada de olhares ausentes. Parada a composição na estação, levantou-se o velho, tacteou com sua bengala de riscas encarnadas e brancas e valeu-se da ajuda do cão guia para encontrar a saída. Parecera-lhe bom aquele cheiro, vindo por certo de sitio com vida, apeou-se, continuando em sua vida nunca por um dia esquecida. Ouviu pouco depois o ' taca-taca ' das rodas que se afastavam, juraria ter sentido o aroma a carvão, acenou um adeus e seguiu seu caminho. Lá de longe, de cada vez mais longe, não houve acenos de volta, as caras continuavam especadas mirando janelas de uma vida sem elas.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
tectos, cheiros e sentidos !
O tecto era o de sempre, senão o mesmo pelo menos da mesma família de tectos impessoais e recheado de histórias. A companhia, como o tecto, era um enorme espaço em branco, de quem nada queria, de quem nada sabia, cujo sorriso e fala dengosa lhe cobravam, junto com o habitual arquear de coxas e gemidos de juntar água, mais que o combinado, cobravam questões existenciais.
- Tens um olhar triste ... um olhar triste e cheiro a fritos. És sempre assim?
Estranhou a pergunta, afinal sempre por ali aparecera numa estudada e perfeita figura, barbeado e de duche tomado, como quem vai a um teatro ... de sensações negociadas à posição!
O tecto, este novo que o cobria, salvo seja, era o de sempre, com sancas trabalhadas a reboco de artista, limpo e imaculado como o branco da pureza das virgens. À volta do manjar que preparava mais como passar do tempo do que por arte culinária, olhava o borbulhar do óleo e o seu efeito sobre a ementa que preparava. A companhia, como o cozinhado, era um rebuliço efervescente, mal com isto e aquilo, mal com o bem e o mal, de quem nada sabia já, de quem nada recordava, cujo rosto fechado e fala metálica lhe cobravam, junto com a mecânica e fingida sessão de perna arqueada e gemido de falsete, mais que o dia a dia, cobravam questões desistenciais.
- Tens um olhar idiota, um olhar idiota e cheiras a puta. És sempre o mesmo !
Estranhou a afirmação, afinal sempre por ali estava numa repetida figura, limpo de cheiros e pistas, com o mesmo ar cansado de um dia de intenso trabalho.
Pela primeira vez, sem segundas intenções, imaginou-se com uma terceira pessoa ... num quarto sem cheiros, sem quintas dimensões e sextos sentidos.
Apagou a luz e adormeceu!
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
banco de mãos com cores ...
Sentado por ali mesmo ao lado, estranhava Marito a concentração com que o velho mantinha as mãos fechadas. Não que o incomodasse, mas admitia que ao fim de algum tempo a curiosidade lhe aumentara sem fim, estava decidido a desvendar o mistério nem que para tal tivesse de o olhar nos olhos e metralhar a questão. Ao fim da tarde, depois de um desfiar de horas em que a coisa se mantinha e de novas nada, ganhou coragem e sem mais atalhos disparou:
- Que tão bem guardas velho, em mãos fechadas de guardar tesouros?
Com a mesma serenidade com que passara a tarde num silêncio sem respostas, virou-se para o petiz e retorquiu:
- Quererás pequeno, que o segredo das minhas mãos voe para ti?
- Mas, de que se trata afinal?
- São cores ... como te chamas mesmo?
- Mário ... mas podes chamar-me Marito ...
- Pois Marito.. são as cores que aprendi na vida .. em todos os dias que acordei e vivi.
- Como assim ?
Abrindo as mão, deixou o velho escapar um vermelho que de imediato coloriu o ar em volta !
- Este era a companhia de dias de raiva, de timidez, de calores indesejados ... era assim como uma companhia estranha e tantas vezes presente.
- Repete .. por favor ..
Da outra mão agora aberta saiu um verde, explicado por dias de esperança, por dias de fraqueza enjoada, por dias de olhar o mar também.
Marito estava preso naquela magia de cores falantes, de azuis de céu em dias bons, de cinzentos em dias de apetecer coisa alguma, os castanhos alaranjados dos dias de outono, pretos de tristeza, de lutos e contestações, os brancos de pureza e de lividez também, amarelos em dias de chinesices, desfiou o rosário de cores que lembrara ter aprendido, para todos tinha o seu companheiro de banco um momento, um dia e disposição, uma lembrança de coisas sentidas ... Por mais que rebuscasse em seu caleidoscópio de menino que não desiste, lá vinha um dia com memória, de coisa feita e passada, sentida como feita num mundo de mãos com cor.
- Mas ... e que fazias ... que farias ... se ...
- Se .. ?
- Deixa ... nada ... se o dia aparecesse sem cor ... assim como se fosses tu a pintá- lo?
- Isso, querido amigo recente ... isso era nos dias de coração ... de viver dentro de mim, onde se é transparente...
Marito quedou-se mudo em tal resposta, sabia que assim era com ele, que apenas fora de mão e de mãos se encontrava no coração ... sonhava caminhos e percorria desafios.
Levantou o olhar e quis abraçar o velho sábio. Espantado, mudo até ... sentiu o branco de lividez, o âmbar de espanto, vermelho de raiva e algum verde de esperança ... o banco estava agora desocupado ... guardou a esperança que a partida conquista de troca de palavras soubesse andar por ali, para quando um dia cuidasse entender a transparência escrita nas mãos em cores de coração seu. Olhou o banco uma última vez e estranhou-o, de novo lhe pareceu um simples e público banco.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
gentes de babel !
Sissoko McCourt Walker não se queixava da sorte. Não que a falta dela não fosse coisinha presente em tanta hora de sua vida, mas porque o tempo que tal lhe tomaria era precioso para a arte com que se ocupava nos mais das horas, dos dias, das noites também: sobreviver sendo feliz, chegar ao fim entendendo o princípio e o meio, poder olhar para trás sem olhos de cão caído. Dera provas de qualquer coisa de lutador, ao ver-se pelos dois anos sem peito de mãe, coisa perdida por luzes de fraco e intermitente neón de surreais e nómadas bordéis de ruas de pó, sem rasto de pai, de cujo rosto não se lembrava, mas que acreditava guardar em foto desbotada, com vestimenta de nobre e pingalim, numa moldura em forma de garrafa, com o nome de família escarrapachado à frente de um tal Johnny, que apostava seu primo.
Criado em rua de balas e sangue fresco, bebida a imunidade em poças de água de pouco cristo, soubera Sissoko perceber que por ali não o esperavam ensinamentos de vida tranquila e boa, que julgava merecer, como qualquer bebé branco, cigano, judeu, árabe, anão, amarelado, indio ou mesmo do Cacém. Fugiu do lar das freiras da Irmandade das Recolhedoras, em noite de algazarra e violações a eito, coisa de alcool e espingardaria em barda, olhou ao crucifixo e dele quase teve pena, saiu a correr e não mais parou. Juraria ter corrido dias e semanas sem fim, qual Forrest Gump de produtores remediados, meteu-se num barco com destino a porra de lado nenhum, fez-se ao mar, estava sózinho e com sete anitos já, zarpou à vida, rezou a todos os santos e santas cujos nomes aprendera, nada mais pedia que não a estrela do norte, a polar, a da Amadora... umazinha qualquer que o guiasse a terra por onde gente fosse gente, antes das pinturas de pele, colares divinos ou etnias sacras em terras heréticas.
Era dia de calor, de calor à séria, quando Sissoko McCourt Walker aportou a NY em sua casca de noz, ao meio de vasos da US Coastguard que o tomaram por detritos do oceano, abismando de espanto com aquela senhora que agarrava tochas de liberdade esquecida e embatendo de tal modo forte na amurada de atracação que foi o pobre, em sentido lato, cuspido América adentro. Fazendo uso de medos ausentes, de trabalhos frio ou fome, agarrou biscates, cavou e farejou oportunidades, usou tempos livres, leu e subiu a corda, a pulso e esperteza de gente também, não passaram dois anos que não tivesse vida sem sobressaltos. Orgulhava-se de si e da sua origem, não a discutia nem debatia, com pena muita mas enfim, gostava de olhar-se e ver como a vida estava ali, feita com dias em que pessoas assim ... de tanto e largado azar, ele era a cor, a origem, a miséria como ama de leite, a solidão achada em guerra perdida, sabiam espreitar os insondáveis mistérios da cruz, da luz, do verbo, de todas as coisas sagradas e tantas.
Saíu à rua Sissoko, naquela tarde de sol ... juntou-se à multidão que se apinhava para ver o que julgava uma produção hollywoodesca de um novo Star Wars, um bruá e mar de aplausos admirados mirava a nave espacial nunca dantes vista naquela Avenida, a 5ª ainda por cima. Sairam os homenzinhos verdes, antenas e olhos esbugalhados como prova viva de que vindos do além, pegaram nele, logo nele, Sissoko Walker, meteram-no a bordo e perante o espanto de uma multidão de basbaques voaram céu afora. Sissoko, menino bebé da guerra, vendido barato a barata fome, gente ninguém de pai e mãe .. que fazias por ali ? Por mundo de gente morta ?
Voltou ao seu planeta, na terra caíra por engano, assim juravam e se desculpavam os deuses, pelo nome de homem-homem, pela escapada do pobre agnóstico, obra improvável de um coração abençoado.
- Sissyduz McCrurk Walzcker, se voltas a ir brincar à Terra, deixamos-te lá.
- Mas Captain Pappá, estava só a brincar aos contos de fadas!
- E viste, em tal sítio viste por acaso alguma fada, boa fada?
- Não Paizinho, apenas uma foda, uma boa de uma foda ! De gentes de Babel!
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
fraca oração ...
E a ti deus de letra grande
Entrego meu medo e pequenez
E no alivio da sombra tenho
Certeza de ter e de não ter
A ti, deus de nome estranho
Por quem me ensinam desamor
Diz-me que faça,que desande
Que me esmague essa altivez
A teus céus teu reino venho
Buscar olhos para saber ver
Ou por onde saber o tamanho
De dias todos vazios de côr
E para tanta estupidez
Minha, tua, de ninguém
Com tanto grito calado
Grita deus, em tua vez
Os segredos desse além
Onde está o amor rezado
E por nós, servos assim
Desce de novo Homem bom
Não te chega gente esta
Que entre vidas sem fim
Reza crente, pede o tom
Para deixar de ser besta
Entrego meu medo e pequenez
E no alivio da sombra tenho
Certeza de ter e de não ter
A ti, deus de nome estranho
Por quem me ensinam desamor
Diz-me que faça,que desande
Que me esmague essa altivez
A teus céus teu reino venho
Buscar olhos para saber ver
Ou por onde saber o tamanho
De dias todos vazios de côr
E para tanta estupidez
Minha, tua, de ninguém
Com tanto grito calado
Grita deus, em tua vez
Os segredos desse além
Onde está o amor rezado
E por nós, servos assim
Desce de novo Homem bom
Não te chega gente esta
Que entre vidas sem fim
Reza crente, pede o tom
Para deixar de ser besta
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
conto improvável .. à volta de coisa nenhuma !
De pouco lhe interessava a nobreza do gesto, a grandeza da missão num futuro próximo reconhecida e agradecida. De pouco não, de nada mesmo, o risco era enorme, a claustrofobia muita, o nome arrastado num futuro de epítetos de pouco charme acabavam e arrasavam com qualquer resquício de espírito de entrega. Porquê ele, logo ele, dono e senhor de ruas e liberdades, conquistador renomado de espaços privados e alheios? Não, definitivamente não, era a resposta, mais a mais em tarde como aquela, coisa de Belzebu, tanta era a bátega, a friagem trazida por um vento que parecia não encontrar outro entretém que não o de rebentar com a quietude de um domingo. E no entanto, deu por ele trancafiado em espaço exíguo, juraria até etiquetado com endereços de médico tratador, como fôra possível ele, logo ele Garfield du Banlieue, prestimoso cidadão livre, ufano bichano de esguias investidas devidamente urinadas e assinadas, ser assim agarrado, feito menino travesso de infantis maldades?
Por entre a angústia de um acatitado e castrante espaço feito caixa de cartão, não via como dar desvio às agruras que o destino lhe reservava, lamentava até a volta ao local do crime, tantas que tinham sido, sempre impunes, como havia permitido cair em tão desusada ingenuidade? Apelar à entidade divina, coisa de humanos, pareceu-lhe recurso último que não podia no entanto afastar. Rezou um Padre Nosso, substituiu a parte da posse divina por Deles e atirou-se com um afinco e convicção que em si desconhecia, a pedir favores e empenhar promessas. O ignóbil carcereiro, senhora no caso, parecia impante em sua conquista de dias sem cheiro seu espalhado em tapetes e alcatifas, espalhando sem pudor as novas sobre a situação em espaço que reservara em Coreto Público. Nem a desgraçada intempérie parecia condoê-la, como se não entendesse o apelo celestial de misericórdia em destino de bicho vadio, tantas e tantas vezes feito bravo soldado por ruas de carinho vazias. Liberdade, doce liberdade, repetida em gozo de exaustão por divididas incursões ao espaço alheio, ia-se-lhe a liberdade enfim, deus era pequeno e ausente, dos humanos apenas certamente. O relógio dava-as umas atrás das outras, contara-as já e incluíra as meias, o adiantado nada augurava de bom. A nesga, aquela nesga, de ar, luz e liberdade pareceu-lhe então coisa onírica, maquiavélica, última demonstração da velhacaria e poderio de tão desumana figura. Arrependido, chorado e desculpado um passado de águas vertidas em terrenos conquistados, saiu ao cadafalso, não sem um olhar a suscitar a maior comiseração. Estranhou a rédea larga, deu de barato que para o novo destino estava entregue e pulou. Pulou fora, da caixa, do sitio, da varanda, do bairro, da cidade e arredores.
Manhã cedo acordou sabendo que à promessa não fugiria, desafiar deuses e suas iras era assunto que nem a ele, um verdadeiro du Banlieue , lhe passaria pela cabeça. Por mais que custasse, controlaria com mão de ferro, pata de ferro vá lá, a sua bexiga orientadora de territórios, secá-la-ia a golpes de teimosia. Livrar-se-ia da ignomínia do apodo de Mijão, deixaria para outras calendas a visita à porta do veterinário, qual cesto em porta de igreja, e recomeçaria sua vida em outras artes. Pegou em si, fez-se nuvem e tratou de voar. Em busca de janelas, novas janelas, onde a água batesse e acordasse as pessoas, onde de par em par entraria em vôo picado, feito Garfield Fantôme de conto para crianças. E assim sim, viesse de lá a nobreza do gesto e as vontades de sentir o cheiro da chuva que ele, o velho vadio de fraca bexiga, saberia mostrar-lhes o surreal da coisa !
domingo, 14 de dezembro de 2008
ventania ....
Mais que a preocupação do caminho das nuvens, Maria trazia-se em cuidados com a sorte do vento ele mesmo. O marasmo, repetido e bafejado por calmarias de além mar, mantinha-lhe o acordar diário numa ida e vinda de coisa alguma. Não que tivesse deixado de acreditar nas virtudes que sabia terem-lhe cabido por herança, genética e consequência de longas tardes também, por entre conselhos e sabedorias várias transmitidas em histórias de sua avó, bisavó e demais antecedentes.. Isso nunca! Sabia-se com destino de fim de filme, coisa americana caso disso fosse. A questão era que ... do lado do horizonte nada lhe espreitava que não fosse mais do mesmo, do fado repetido em ladainhas de mães e mais o rosário de outras antigas mulheres. Todos iguais, nenhum que prestasse, e no entanto por entre eles vivera, com alguns aprendera mesmo o doce sabor de se sentir querida e desejada. Em coisas de mãos dadas por fugidos namorados, protecções de irmãos nais velhos, saudades trocadas com austero pai de desajeitados colos e ternuras. A hora, de encontrar caminho seu, sem as agruras de façanhas perdidas por temidas, Maria sabia pois que, cedo ou tarde, a hora chegaria de pôr vista e coração em cima, salvo seja, salvo fosse, de pessoa que lhe descobriria caminhos e risos escondidos, afagos destemidos e divididos numa igualdade de loucuras sonhadas. Naquela tarde, imprevista tarde, trocada em intermináveis e surreais vontades, namoradas em mundo virtual de desconhecidos palpitares de coração, Maria estranhou o vento em sua ausência, atormentou-se com o cheiro da chuva que lhe acenava em tarde de inverno e abriu a janela. Deixou chover , como se a chuva a quisesse por sua e foi ! Há tempos que não olhava parada a chegada de tão inesperada ventania. Abençoou as tardes passadas a escutar histórias de homens iguais e os temores por quietudes e solidões e foi! Em busca de passada ventania !
imprevisto ...
De chuva, pois assim me visto
Em tarde, que assim conquisto
E nela vens cheiro imprevisto
Diz-me, chuva, que faço disto
E porque me choves em segredo
Num meio de público e vestida
Como quem navega,sem medo
Como quem te vê tarde perdida
Porque de longe, ao longe teu
Porque imprevisto assim voara
Aquele guardar, pouco, só meu
Por onde o imprevisto entrara
Em tarde, que assim conquisto
E nela vens cheiro imprevisto
Diz-me, chuva, que faço disto
E porque me choves em segredo
Num meio de público e vestida
Como quem navega,sem medo
Como quem te vê tarde perdida
Porque de longe, ao longe teu
Porque imprevisto assim voara
Aquele guardar, pouco, só meu
Por onde o imprevisto entrara
sábado, 13 de dezembro de 2008
o desembrulhar ...
Chegara o 25, o dia seguinte à visita do querido velho barbudo, e novas dele ' viste-las ', como tantas vezes tinha ouvido da boca da desaparecida avó. Não que a coisa o incomodasse muito ainda, já nem era por mais brinquedo menos brinquedo, aliás há tanto que se afeiçoara à velha bola de trapos, coisa de tantos anos atrás, que até lhe pareceria traição de adulto trocá-la por outro em seu afecto de menino bom. Chegara o 25 pois e, azar, calhava a um domingo. Se a ida à igreja, para a missa dos pavões era assunto práticamente impossível de tornear, calhando no dia do Senhor não havia aritméticas que o ajudassem a escapar. Preparou-se nas suas vestimentas de rapaz bem apessoado, as mesmas velhas calças e camisa de sempre, onde nem os botões levavam sumiço ou substituição, e tratou de arranjar escusa ao velho faltoso, por ele mentia a eito, assim os dois ficavam bem, o velho por justo, ele por não esquecido.
No largo da Sé, que de Sé nem o nome pois que lhe faltava o acento no 'é', assustou-se com o parco número de conterrâneos à porta, apenas os do costume, um velho pedinte em seus trapos de cheiro a vinho, a beata mor controladora de ausências e um ou outro fumador de crenças divididas com seu vicio. Rumou célere claustros adentro, claustros com a benção do Senhor bem se vê,pois que de semelhante espaço nem as arcadas guardavam, e tratou de pensar em encontrar espaço por entre o meio de ataviados amigos e pessoas de boa devoção. Espantou-se ao perceber que de entre o mundo de gente com presença ali costumeira, apenas seu amigo Paulito marcava presença em ajoelhado fervor, agradecendo certamente por aqueles minutos em que se poupava à chuva e frio que lhe substituiam as sopas em casa. Sentou-se, mirou os santos e santas nos pedestais, lançou ao padre um sinal da cruz para entrega no altar e arriscou em sumida voz para o amigo:
- Não vem ninguém? Mas hoje não é 25? E ainda por cima domingo?
- Houve tragédia, lá no largo. Coisa feia ...
- Então?
- O Tomás, sabes, o mais novo dos D' Annunciação? Despencou-se na moto 4, vê lá, novinha de ontem à noite, ainda trazia papel de embrulho agarrado.
- Thomaz ... queres dizer! Mas o cachopo não tem três anitos apenas?
- Sim e depois?
- E o barbudo já lhe faz entregas motorizadas? Que cabrão de filho da puta, ainda me admiro que se perca nas vielas e não se me chegue ao casebre. Ele e mais as cabras das renas, que de santas também nada devem ter. Uma moto 4 ? Seguro Paulito?
- Que queres? A criança andava a massacrar o velho com cartas. Diz-se que as mandava por email, do próprio portátil que lhe caiu na meia há um ano atrás?
- Portátil?
- Sim, portátil sim. Já se entediava com a PS 3. Coisas lá deles, que tens tu com isso?
Marito não era de olhar para os outros, nem para o que comiam, nem para o que vestiam, menos ainda para brinquedos e outras posses. Mas, já era azar, muito azar, azar mesmo a mais, o que o tal de Pai Natal lhe apresentava como atenuante. Ele era o visto negado à saída da América com seu presente brutal para ele, era a rena com um parente adoentado e sem remissão, era o tamanho do embrulho que se inviabilizara perante tão sumida chaminé, e mais a perna que havia perdido no Vietname ... ele vinha de tudo daquela cabeça. Não que ele papasse a conversa, mas gostava de imaginar que era azar apenas. O de ser Marito, filho de pai pouco visto, irmão mais novo de um molho cuja extensão nem conhecia ao certo. Mas aquela história do tal Tomás, que se fodesse o 'h' e o 'z'.. aquilo era demais.
- Como foi ?
- O canalhinha vinha despencado, só se lhe via o sorriso metálico, há quem diga que do diabo, e entrou pelo desgraçado do filho do dentista,sabes, aquele snobzito da pôrra?
- Mas e ele nem se desviou?
- Diz que não viu, que os réban não deixaram..
- Ré quê?
- Ban ..
- Que é isso?
- Uns óculos de sol, coisa do velhinho das barbas como calculas ...
- Óculos de sol? Para esta chuva?
- Pois, mais ainda sem as tais lentes de fundo de garrafa, ou lá o que ele usa..
- E nem um ´água vai ' de aviso?
- Parece que a irmanzada por ali se dividia entre um telecomandado e uma PsP e o resto bulhava à conta de comparações e grandezas na meiinha da chaminé. Só deram pela coisa à chegada dos bombeiros.
Fez-se a missa assim mesmo, não sem o velho padre adiar para o dia seguinte nova encomenda de agradecimentos ao Senhor, pela quadra, pelo amor terno, fraterno e sempiterno. E que os presentes soubessem que dela não estariam dispensados.
Marito regressou pois a casa, já de menos mal com o tal velho de encarnado vestido, com ele e com as renas, de cujas e de nunca as ter visto, chegava a duvidar a existência. Entrou em casa, deu um giro pela cozinha, surripiou uma mancheia do pouco açucar que restava de meia dúzia de filhozes, deu largo ao que sobrava das espinhas de um tísico bacalhau feito ceia e encarou o pai.
- É verdade paizinho, que o Natal é quando um homem quer?
- Claro, já to disse muitas vezes.
- E tu ... nunca queres que ele seja?
- Que é lá isso? Porventura deixo que te falte alguma coisa?
- Não, claro que não. Mas diz lá ao barbudo que me faça o deste ano lá para o verão do ano que vem. E, em não havendo renas doentes nem parentes delas, não lhe negando Deus condições ao seu trabalho, que me traga um fatinho de banho, usado que seja. Assim como assim, sempre evito o falatório de nadar em pêlo ou cuecas rôtas .. e mal por mal não corro riscos no dia de desembrulhar de esperanças.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
nada de especial ....
... a não ser que vivo ali a parte que me toca de mundo, de povo e gente, de ideias inventadas, de cheiros cruzados, deuses vividos, medos escondidos, passos apressados, voltas trocadas, olhares sonhados. Nada de especial portanto. Gosto de entrar num café, do cheiro dele e do tamanho dos baldes em que o servem, de cruzar passos e olhares sem destino, gosto do trânsito e do eterno buzinar, do modo como atravessamos a estrada num caos organizado, gosto do ' walk vs don't walk ', e do tamanho dos edificios, do frio muito frio e do calor que não se aguenta, e dos cheiros a ' hot dog e kebab ' que nascem em triciclos de yuppies da nova alimentação, gosto dos parques que são parques, com gente que ali é gente, e os esquilos, é verdade, dos esquilos também, de turbantes, de barbas de judeu, de executivos de ténis, de fumadores que se amontoam em tertúlias de vão de porta. Gosto das filas intermináveis de táxis amarelos, de japoneses fotógrafos e de patinadores, das ruas com números e de números com avenidas, de parar na Times Square e embasbacar com a publicidade do mundo, a melhor, a mais cara, a mais luminosa, gosto das sextas feiras à noite, com aquela coisa de se ser de NY, de onde é o mundo todo, de me cruzar na rua com pessoas parecidas com outras pessoas, daquelas que conhecemos e que ali achamos que se cruzam com a nossa sombra também. Gosto de entrar pelo Madison Square Garden, de subir a 5ª, fazer a Broadway todinha, com direito a Little Italy, Village, Soho e Chinatown, gosto que de tanto andar me doam os pés e me encoste à porta de um Starbuck, balde de café numa mão, cigarro na outra, de especar no Ground Zero e reviver o indizível 9/11.. Enfim ... gosto sempre que entro naquela cidade, recomeço no ponto em que a deixei ... Apaixonado. Por dias sem igual ! E começa sempre assim .. por um pequeno almoço que me encanta ... e sem nada de especial . Apenas por ser dali .. talvez também porque acompanha com um Mocha Java e saber que a rua ali me espera. Para NY ser minha e eu dela!
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
está frio !
Está frio, não muito, não daquele de encolher almas e quereres adentro gorros, bolsos e passos apressados, mas está frio. Com o relativo da medição, bem se vê, frio é frio, aqui ou ali, mas do calor se diz o mesmo e não o há unânime. Creiam-me no entanto, a coisa rondava os 7 ou 8º, as roupas indiciavam pois que não era de quenturas a manhã. Saídos de um comboio para o outro, em Journal Square, aguardámos pacientemente, eu e o meu amigo Zé, por entre passos para lado algum e olhares por ali mesmo.
Um afroamericano, espelhado numa inconfundível cor de ébano e no sotaque mastigado dum inglês continental, devotava um interesse genuíno e uma atenção sem segundas intenções a uma quase idosa senhora, que lhe recolhia a simpatia no diálogo carregado de conselhos e informações. Raisa era o nome dela. Warm, Mr. Warm, deveria seu interlocutor chamar-se, por contraponto aos poucos graus Fahrenheit ali presentes.
Chega o comboio e com ele a eterna dúvida onde exacto bocado da plataforma irá ele franquear as portas. Warm, velho de vida e de estações por certo também, faz a sua aposta arrastando num delicado gesto de braço a sua amiga de mundo, de vida, de lado algum mais. Raisa não era afro, americana menos ainda, teria longe no Leste europeu as suas origens certamente. Deixou-se pois guiar, num misto de geografias improváveis e de emoções esquecidas. Abertas as portas, os poucos lugares sentados foram num ápice tranformados em bocados de cobiça. Numa cuidada lentidão, como se o tempo lhe devesse entrega e devoção, Warm conduziu Raisa à conquista de um espaço que dificilmente lhe seria destinado. Ainda que quase idosa, o bom aspecto traía-lhe a legitimidade da reserva incondicional do lugar. Warm, sentada que estava Raisa, disfarçou a sua evidente satisfação, escondeu por artes mágicas o seu ar bem mais avançado em anos de agruras e posseguiu a conversa, fazendo daquele momento o momento de duas pessoas, sós no meio de tanta gente, encontradas e aproveitadas num bocado de América. Durou o que durou aquele bocado, o sorriso de gente que sabe sorrir acompanhou aqueles dois, nos curtos minutos que levam até Harrison. Aí chegados, Raisa levantou-se e abeirou-se da porta, no que foi seguida e acompanhada pelo olhar de Warm, naqueles momentos finais que não acabam como nos filmes. Aberta a porta, de novo o frio entrou, nos fez lembrar que a vida acontecia lá fora, não ali dentro, naqueles momentos que por certo ninguém via mais.
Larguei o disfarce de seguir tudo por entre olhares ao jornal de ocasião e fitei a despedida. Não vi nada que não fosse a ternura de saber viver a vida em bocado tão pequeno quanto aquele, tão improvável, irrepetível. Assim julguei.
- Watch the gap M'um and take care !
Pela primeira vez percebi o sentido de uma despedida, como quem deixa um braço que ajuda sem estar lá mais.
Raisa seguiu pela plataforma. Estava frio! Warm seguiu conosco até Newark, sorrindo e ajudando a compreender porque vale a pena agarrar assim os dias. Soube naquele momento que vos ia apresentá-lo. E agradecer-lhe daqui, de tão longe, como de África às estepes, de Lisboa a NY, ter-me mostrado a sabedoria e amor nos braços de um velho!
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