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A chuva caía simples naquela esquina com a mesma geometria de outra qualquer em canto do mundo ao acaso, onde a geografia da cidade cruzava a Walker St com a Broadway Ave, se escutavam os ecos de passos apressados por entre os vendedores da magia comercial e oriental de Canal St, os reflexos dos pingos de água escorriam e dançavam em um neón mais, uma cor mais, um bocado mais de vida, gente e chamamentos. A cidade vivia e oferecia o que tinha e o que se sonhava querer, abrigo de gente ninguém deitada e escondida por entre cartões caixa forte que tapavam o frio e escondiam derrotas e desesperos, desistências e esperas de nada, abrigo de sonhos e deslumbres, de correrias e derrocadas das almas em fuga, perdidas de braços abertos em busca de um momento, do seu momento, do seu lugar. Ali. Onde chovia simplesmente e se escondia a vida feita em recato.
Lucia, a impossível e idosa Lucia, surda de sempre e pacóvia de cultura, vinda arrastada por descendente recém glorificado na terra de todos e ninguém, Lucia arriscara a saída do casulo emigrante e aventurara-se aos céus em busca do deus do significado. Naquele lugar, onde chovia como já sabemos, onde corriam sem parar os seus iguais impossíveis, molhada mas não acabada, Lucia entrou e sentou-se. E sentou a sua surdez e o peso dos seus noventa e três anos, deixou que o aroma a café lhe invadisse o corpo e alma numa violência de prazer, viajou ao passado fantasma dos cafés na cozinha de um casebre de pedra que a viu nascer e lhe deu uma avó que a criou. Olhou ao lado onde um copo meio cheio de um café que não esfria aguardava o regresso à vida. Lucia assim fez, pegou-lhe e fez vida sua e começou a olhar o mundo de vidas e corpos e olhares que desprendiam quietudes e despreocupações, arrelias, quereres, desistências ou fantasias. Lucia não viu olhares mortos nem parados. Nem mesmo os que estavam mortos e parados. Viu-se apenas a si em todos os cantos e mesas onde se bebia café. Lucia estava apaixonada.
Os cabelos eram longos, os óculos redondos, o olhar longínquo parecia preso num eterno Woodstock onde se gritara a liberdade, se amara livre e por entre as flores, as mesmas flores que cresciam escondidas em campos de morte e guerra, as flores que ali vestiam a inocência de todas as inconsciências. O telemóvel, utilizado por entre consultas a um computador portátil e uma secção de publicidade do New York Times, parecia deslocado como as flores na guerra. Lucia olhava-o mas não lhe sabia o nome, sabia-lhe sim o cheiro e olhar, parado numa viagem, imaginava-lhe um lugar no mundo, vestia-o de pessoa que não acaba, antes se transveste e transveste até à viagem final.
Mark, o cabeludo e ossudo companheiro de café de Lucia, olhou-a e guardou-a, reconheceu um brilho de anos escondido em olhos de sabedoria anciã. Não quis saber quem era e dedicou-lhe um momento seu, sorvendo um gole de café, bebendo ali Lucia para todo o sempre que o esperava em cada dia.
Na mesa mais afastada, duas mulheres intervalavam acalorada conversa, coisas de cifras e negócios, com olhares cúmplices de quem se deseja, de quem anseia o fim do reboliço do dia para se amar no reboliço na noite. As mãos vaguevam por entre o teclado impessoal e toques pessoais, quentes e ternos, os risos calmos, sorrisos lânguidos, jeitos e trejeitos feitos em roçares tão inocentes quanto nada escondidos, transformavam aquele recanto num mundo àparte dentro daquele mundo àparte. Lucia olhou-as e imaginou-as, despiu-as e levou-as a nadar no rio da sua infância, bailou com elas nos bailes da aldeia até estar exausta e adormecer nos braços e peito da mais alta, sentiu um arrepio que julgava morto há muito, ajeitou os óculos e sorveu um gole de vida e café morno.
Lyssa e Marie, as duas amantes e parceiras de negócio, olharam num repente e em surpresa o perfil da improvável figura lá longe, imaginaram-se assim desfeitas em rugas e em silêncio se perguntaram se ainda se amariam quando os corpos fugissem ao desejo. O olhar vivo de quem nunca soube o que era ouvir, retornou-lhes um misto de prazer e compaixão. Sem confessar, ambas se banharam nos idos rios e tempos daquela desconhecida e lhe imaginaram um pudor e recato que as deixou sem ar e sem palavras. Lyssa e Marie acabaram a reunião, olharam o velho hippie que por ali navegava na internet e quedaram-se no silêncio que enchia os corações. Lucia, bem Lucia sentiu-se mais gente.
Ao lado, perto tão perto que lhes podia sentir a alma e o aroma, Julia satisfazia a extravagância de Pepe, seu quinto ou sexto filho, já nem sabia precisar, e gastava o impossível num frapuccino de caramelo, numa orgia de preço e tamanho. Nos minutos ali inventados, em sitio de mundo onde julgavam não caber, o par recebeu a sombra de Lucia como quem se revê no passado e sonha com futuros de vida, trocaram olhares de quem nasceu onde as janelas não tapam o sol nem o frio das vidas ou dos invernos, beijaram-se num respeito de filhos de deus, esquecidos mas nunca perdidos, sorriram à beleza daquele mundo onde a vida ouvia a vida, Julia não se sentiu triste por sua eterna surdez, Lucia respondeu-lhe com a força de todos os corações de mãe, com os lábios sorridentes de quem vivia na paz do mundo sem palavras. Lucia sentiu-se gente de novo. E apaixonou-se por aquele lugar.
À saída, de volta à esquina que recebia a chuva simples, rabiscou em seus parcos recursos de escrita as letras daquela casa.
Haveria de voltar, Lúcia haveria de voltar a um Starbucks...