terça-feira, 23 de dezembro de 2008

janelas ...


O comboio seguia em seu ritmo cadenciado, num repetir de ' pouca terra, pouca terra ' que o levava por entre vales e pontes, rios e montanhas, numa paisagem mais própria de contos de Natal do que de ligação da cidade à aldeia. Corria a manhã, um sol de Inverno entrava carruagens adentro, dando ao ambiente uma agradável sensação de conforto, as pessoas por ali pareciam ter tudo para ser felizes naquele dia de Ano Novo. E no entanto a quietude e o silêncio carregado nos semblantes fazia crer que da vida nova acabada de chegar pouco de bom se devia esperar.

Manuel, robusto rapagão na casa dos vinte e poucos, seguia mudo e quedo, cego pela raiva de se saber trocado por António nos favores de Maria. Olhava a janela com cara de carneiro mal morto, esmagado pelo peso dos dias que aí vinham e que de bom por certo nada lhe trariam ao coração despedaçado. Três bancos atrás, coisa do destino e de Belzebu, António repetia a cara de parvo pregada aos vidros, cego de paixão pela rapariga que agora se fazia e dizia sua, o seu silêncio era mais de proteger o azar de que tudo não passase de um sonho. Mais atrás ainda, numa coincidência de pedir meças às previsões das ciganas, sentava-se Maria, a trocadora, alheia a tudo e todos, cega de remorsos por um ter abandonado e outro se preparar para desenganar um dia. Espetara as vistas lá para fora, não tossia nem mugia, o estado de espírito a tal a obrigava. A seu lado, tão perto e tão longe, Francisco, jovem de familia com nome na terra, seguia cego em sua ambição de tornar às origens e se ver reconhecido como obra divina, arquitectava carreira no poder, pondo e dispondo de velhos e novos da sua infância, mirava os vales e pontes sem nada ver em seu olhar vazio e parado. No lado oposto, Idalina, seguia cega em sua dor, a visita à cidade para enterrar prima chegada dera-lhe cabo das poucas forças que restavam em seus mais de oitenta e muitos, ao certo nem ela sabia precisar. De nada lhe valia a companhia de sua irmã Julia, cega de ciúmes por menor papel que lhe coubera em enterro de gente da capital, com a cara virada ao acaso para lado nenhum. A chegada do revisor foi pois saudada com a indiferença de tanta ausência naquela carruagem, naquelas vidas também., e no entanto a mesma indiferença com que automáticamente cumpria sua missão o moço, José de sua graça, cego que estava de saudades de Rosilene, mocetona de porte nordestino que o presenteava com nunca imaginados esperneares, de cada vez que tinha a sorte de com ela se cruzar em dia de estada prolongada na cidade. Imaginava-a em seus dias de espera, com seu fervor de cega devoção a Deus recompensador, contando os dias para o ter de volta,. Rosilene, essa coitada, cega sim mas por dinheiro, lá ia andando e alternando por entre mesas e gorgetas, que de comboios nem a cor lhes conhecia, afinal havia chegado de avião e assim tencionava voltar.

À passagem por um prado de um verde sem fim, o aroma da terra húmida, trazida por ventos de sol intruso, inundou aquele comboio entrando por tanta janela ocupada de olhares ausentes. Parada a composição na estação, levantou-se o velho, tacteou com sua bengala de riscas encarnadas e brancas e valeu-se da ajuda do cão guia para encontrar a saída. Parecera-lhe bom aquele cheiro, vindo por certo de sitio com vida, apeou-se, continuando em sua vida nunca por um dia esquecida. Ouviu pouco depois o ' taca-taca ' das rodas que se afastavam, juraria ter sentido o aroma a carvão, acenou um adeus e seguiu seu caminho. Lá de longe, de cada vez mais longe, não houve acenos de volta, as caras continuavam especadas mirando janelas de uma vida sem elas.

4 comentários:

Vitor disse...

Vidas tristes toldadas pela cegueira…de cegueira nenhuma…feliz aquele que em seu mundo de escuridão, consegue “ver”e sentir o cheiro das coisas boas que a vida lhe oferece.

XR disse...

Uma manta colorida, cada pessoa um retalho, patchwork de vidas a bordo de um comboio.

Bonito texto, John.

Ana GG disse...

Gostei de viajar neste conto!

Anônimo disse...

Não se pode apreciar uma azevia...Parabéns!!Temos que andar em cima para não perder o comboio da criatividade...Abraço!ASS.COMPADRE