sábado, 13 de dezembro de 2008

o desembrulhar ...


Chegara o 25, o dia seguinte à visita do querido velho barbudo, e novas dele ' viste-las ', como tantas vezes tinha ouvido da boca da desaparecida avó. Não que a coisa o incomodasse muito ainda, já nem era por mais brinquedo menos brinquedo, aliás há tanto que se afeiçoara à velha bola de trapos, coisa de tantos anos atrás, que até lhe pareceria traição de adulto trocá-la por outro em seu afecto de menino bom. Chegara o 25 pois e, azar, calhava a um domingo. Se a ida à igreja, para a missa dos pavões era assunto práticamente impossível de tornear, calhando no dia do Senhor não havia aritméticas que o ajudassem a escapar. Preparou-se nas suas vestimentas de rapaz bem apessoado, as mesmas velhas calças e camisa de sempre, onde nem os botões levavam sumiço ou substituição, e tratou de arranjar escusa ao velho faltoso, por ele mentia a eito, assim os dois ficavam bem, o velho por justo, ele por não esquecido.
No largo da Sé, que de Sé nem o nome pois que lhe faltava o acento no 'é', assustou-se com o parco número de conterrâneos à porta, apenas os do costume, um velho pedinte em seus trapos de cheiro a vinho, a beata mor controladora de ausências e um ou outro fumador de crenças divididas com seu vicio. Rumou célere claustros adentro, claustros com a benção do Senhor bem se vê,pois que de semelhante espaço nem as arcadas guardavam, e tratou de pensar em encontrar espaço por entre o meio de ataviados amigos e pessoas de boa devoção. Espantou-se ao perceber que de entre o mundo de gente com presença ali costumeira, apenas seu amigo Paulito marcava presença em ajoelhado fervor, agradecendo certamente por aqueles minutos em que se poupava à chuva e frio que lhe substituiam as sopas em casa. Sentou-se, mirou os santos e santas nos pedestais, lançou ao padre um sinal da cruz para entrega no altar e arriscou em sumida voz para o amigo:

- Não vem ninguém? Mas hoje não é 25? E ainda por cima domingo?
- Houve tragédia, lá no largo. Coisa feia ...
- Então?
- O Tomás, sabes, o mais novo dos D' Annunciação? Despencou-se na moto 4, vê lá, novinha de ontem à noite, ainda trazia papel de embrulho agarrado.
- Thomaz ... queres dizer! Mas o cachopo não tem três anitos apenas?
- Sim e depois?
- E o barbudo já lhe faz entregas motorizadas? Que cabrão de filho da puta, ainda me admiro que se perca nas vielas e não se me chegue ao casebre. Ele e mais as cabras das renas, que de santas também nada devem ter. Uma moto 4 ? Seguro Paulito?
- Que queres? A criança andava a massacrar o velho com cartas. Diz-se que as mandava por email, do próprio portátil que lhe caiu na meia há um ano atrás?
- Portátil?
- Sim, portátil sim. Já se entediava com a PS 3. Coisas lá deles, que tens tu com isso?

Marito não era de olhar para os outros, nem para o que comiam, nem para o que vestiam, menos ainda para brinquedos e outras posses. Mas, já era azar, muito azar, azar mesmo a mais, o que o tal de Pai Natal lhe apresentava como atenuante. Ele era o visto negado à saída da América com seu presente brutal para ele, era a rena com um parente adoentado e sem remissão, era o tamanho do embrulho que se inviabilizara perante tão sumida chaminé, e mais a perna que havia perdido no Vietname ... ele vinha de tudo daquela cabeça. Não que ele papasse a conversa, mas gostava de imaginar que era azar apenas. O de ser Marito, filho de pai pouco visto, irmão mais novo de um molho cuja extensão nem conhecia ao certo. Mas aquela história do tal Tomás, que se fodesse o 'h' e o 'z'.. aquilo era demais.

- Como foi ?
- O canalhinha vinha despencado, só se lhe via o sorriso metálico, há quem diga que do diabo, e entrou pelo desgraçado do filho do dentista,sabes, aquele snobzito da pôrra?
- Mas e ele nem se desviou?
- Diz que não viu, que os réban não deixaram..
- Ré quê?
- Ban ..
- Que é isso?
- Uns óculos de sol, coisa do velhinho das barbas como calculas ...
- Óculos de sol? Para esta chuva?
- Pois, mais ainda sem as tais lentes de fundo de garrafa, ou lá o que ele usa..
- E nem um ´água vai ' de aviso?
- Parece que a irmanzada por ali se dividia entre um telecomandado e uma PsP e o resto bulhava à conta de comparações e grandezas na meiinha da chaminé. Só deram pela coisa à chegada dos bombeiros.

Fez-se a missa assim mesmo, não sem o velho padre adiar para o dia seguinte nova encomenda de agradecimentos ao Senhor, pela quadra, pelo amor terno, fraterno e sempiterno. E que os presentes soubessem que dela não estariam dispensados.
Marito regressou pois a casa, já de menos mal com o tal velho de encarnado vestido, com ele e com as renas, de cujas e de nunca as ter visto, chegava a duvidar a existência. Entrou em casa, deu um giro pela cozinha, surripiou uma mancheia do pouco açucar que restava de meia dúzia de filhozes, deu largo ao que sobrava das espinhas de um tísico bacalhau feito ceia e encarou o pai.

- É verdade paizinho, que o Natal é quando um homem quer?
- Claro, já to disse muitas vezes.
- E tu ... nunca queres que ele seja?
- Que é lá isso? Porventura deixo que te falte alguma coisa?
- Não, claro que não. Mas diz lá ao barbudo que me faça o deste ano lá para o verão do ano que vem. E, em não havendo renas doentes nem parentes delas, não lhe negando Deus condições ao seu trabalho, que me traga um fatinho de banho, usado que seja. Assim como assim, sempre evito o falatório de nadar em pêlo ou cuecas rôtas .. e mal por mal não corro riscos no dia de desembrulhar de esperanças.

3 comentários:

Anônimo disse...

O Natal visto do outro lado....Desigual
A ostentação de um lado, a frustração do outro, onde deveria estar apenas o espírito....


Beijos
Graça

Vitor disse...

Provalvemente, seriam mesmo dos raibans do barbudo, a causa mais que provável de tão exíguos natais do Marito…um homem quando nasce com as fraldas rotas, há-de continuar pela vida com as cuecas do mesmo jeito…a não ser que o barbudo mude os óculos para Giorgio Armani.;-)

Lita disse...

Um natal diferente, é certo...
Obrigada pela visita ao meu recanto!:)