terça-feira, 30 de junho de 2009

esquina de vida ou gente que nunca morre..



A chuva caía simples naquela esquina com a mesma geometria de outra qualquer em canto do mundo ao acaso, onde a geografia da cidade cruzava a Walker St com a Broadway Ave, se escutavam os ecos de passos apressados por entre os vendedores da magia comercial e oriental de Canal St, os reflexos dos pingos de água escorriam e dançavam em um neón mais, uma cor mais, um bocado mais de vida, gente e chamamentos. A cidade vivia e oferecia o que tinha e o que se sonhava querer, abrigo de gente ninguém deitada e escondida por entre cartões caixa forte que tapavam o frio e escondiam derrotas e desesperos, desistências e esperas de nada, abrigo de sonhos e deslumbres, de correrias e derrocadas das almas em fuga, perdidas de braços abertos em busca de um momento, do seu momento, do seu lugar. Ali. Onde chovia simplesmente e se escondia a vida feita em recato.
Lucia, a impossível e idosa Lucia, surda de sempre e pacóvia de cultura, vinda arrastada por descendente recém glorificado na terra de todos e ninguém, Lucia arriscara a saída do casulo emigrante e aventurara-se aos céus em busca do deus do significado. Naquele lugar, onde chovia como já sabemos, onde corriam sem parar os seus iguais impossíveis, molhada mas não acabada, Lucia entrou e sentou-se. E sentou a sua surdez e o peso dos seus noventa e três anos, deixou que o aroma a café lhe invadisse o corpo e alma numa violência de prazer, viajou ao passado fantasma dos cafés na cozinha de um casebre de pedra que a viu nascer e lhe deu uma avó que a criou. Olhou ao lado onde um copo meio cheio de um café que não esfria aguardava o regresso à vida. Lucia assim fez, pegou-lhe e fez vida sua e começou a olhar o mundo de vidas e corpos e olhares que desprendiam quietudes e despreocupações, arrelias, quereres, desistências ou fantasias. Lucia não viu olhares mortos nem parados. Nem mesmo os que estavam mortos e parados. Viu-se apenas a si em todos os cantos e mesas onde se bebia café. Lucia estava apaixonada.
Os cabelos eram longos, os óculos redondos, o olhar longínquo parecia preso num eterno Woodstock onde se gritara a liberdade, se amara livre e por entre as flores, as mesmas flores que cresciam escondidas em campos de morte e guerra, as flores que ali vestiam a inocência de todas as inconsciências. O telemóvel, utilizado por entre consultas a um computador portátil e uma secção de publicidade do New York Times, parecia deslocado como as flores na guerra. Lucia olhava-o mas não lhe sabia o nome, sabia-lhe sim o cheiro e olhar, parado numa viagem, imaginava-lhe um lugar no mundo, vestia-o de pessoa que não acaba, antes se transveste e transveste até à viagem final.
Mark, o cabeludo e ossudo companheiro de café de Lucia, olhou-a e guardou-a, reconheceu um brilho de anos escondido em olhos de sabedoria anciã. Não quis saber quem era e dedicou-lhe um momento seu, sorvendo um gole de café, bebendo ali Lucia para todo o sempre que o esperava em cada dia.
Na mesa mais afastada, duas mulheres intervalavam acalorada conversa, coisas de cifras e negócios, com olhares cúmplices de quem se deseja, de quem anseia o fim do reboliço do dia para se amar no reboliço na noite. As mãos vaguevam por entre o teclado impessoal e toques pessoais, quentes e ternos, os risos calmos, sorrisos lânguidos, jeitos e trejeitos feitos em roçares tão inocentes quanto nada escondidos, transformavam aquele recanto num mundo àparte dentro daquele mundo àparte. Lucia olhou-as e imaginou-as, despiu-as e levou-as a nadar no rio da sua infância, bailou com elas nos bailes da aldeia até estar exausta e adormecer nos braços e peito da mais alta, sentiu um arrepio que julgava morto há muito, ajeitou os óculos e sorveu um gole de vida e café morno.
Lyssa e Marie, as duas amantes e parceiras de negócio, olharam num repente e em surpresa o perfil da improvável figura lá longe, imaginaram-se assim desfeitas em rugas e em silêncio se perguntaram se ainda se amariam quando os corpos fugissem ao desejo. O olhar vivo de quem nunca soube o que era ouvir, retornou-lhes um misto de prazer e compaixão. Sem confessar, ambas se banharam nos idos rios e tempos daquela desconhecida e lhe imaginaram um pudor e recato que as deixou sem ar e sem palavras. Lyssa e Marie acabaram a reunião, olharam o velho hippie que por ali navegava na internet e quedaram-se no silêncio que enchia os corações. Lucia, bem Lucia sentiu-se mais gente.
Ao lado, perto tão perto que lhes podia sentir a alma e o aroma, Julia satisfazia a extravagância de Pepe, seu quinto ou sexto filho, já nem sabia precisar, e gastava o impossível num frapuccino de caramelo, numa orgia de preço e tamanho. Nos minutos ali inventados, em sitio de mundo onde julgavam não caber, o par recebeu a sombra de Lucia como quem se revê no passado e sonha com futuros de vida, trocaram olhares de quem nasceu onde as janelas não tapam o sol nem o frio das vidas ou dos invernos, beijaram-se num respeito de filhos de deus, esquecidos mas nunca perdidos, sorriram à beleza daquele mundo onde a vida ouvia a vida, Julia não se sentiu triste por sua eterna surdez, Lucia respondeu-lhe com a força de todos os corações de mãe, com os lábios sorridentes de quem vivia na paz do mundo sem palavras. Lucia sentiu-se gente de novo. E apaixonou-se por aquele lugar.
À saída, de volta à esquina que recebia a chuva simples, rabiscou em seus parcos recursos de escrita as letras daquela casa.
Haveria de voltar, Lúcia haveria de voltar a um Starbucks...

5 comentários:

Vitor disse...

…E para quando juntar todas estas histórias de gentes de ninguém, e dá-las a conhecer por quem reclama escrita da boa…é que nem todos têm blogues…em livro era mais acessível…A Lúcia ao invés de voltar a um starbuks, haveria de gostar de se ver numa qualquer montra de livraria…digo eu!!

rui gomes disse...

Olá Janjan. Parabéns. Gostei muito do texto. Se me permitisses, gostava de fazer alguns apontamentos sem que estes estejam visíveis aos restantes leitores. Tens alguma "linha segura"? Um email?
Abraço,
Rui gomes

redjan disse...

rui:

redjan@gmail.com

... seguríssimo. Abraço e fico a aguardar mesmo as tuas críticas !!!

Anônimo disse...

Passei por aqui......
...ainda ontem lá estive, que engraçada coincidência...
Depois de ler este fabuloso texto fiquei com pena de eu própria não ter encontrado a Lúcia... Também não me cruzei com o Mark,com a Lyssa e Marie ou com a Júlia e o Pepe, mas apenas com aquele aroma a café estonteante... A Lúcia, certamente vai voltar, os óculos redondos, ficaram em cima da mesa, em troca das emoções que viveu em meia dúzia de golos... Apesar da idade avançada, vai querer voltar a sentir o significado desta palavra, pois foi assim que viveu toda a sua vida. "Sentir", foi o vício que conheceu primeiro. agora com 93 anos o seu corpo e a sua alma viciaram-se em aroma de café. Achei que seria amável da minha parte, se a visse por aí, dar-lhe um presente, e comprei uma caneca do Starbucks Lisboa. Vai ficar contente, leva-a consigo e vai poder beber um café sem pagar. Nunca mais se vai esquecer. Um beijo...Gostei de te conhecer Lúcia.

Anônimo disse...

..., terá apenas 40cêntimos de desconto numa bebida qualquer.Desculpa Lúcia a intenção era boa.