segunda-feira, 19 de abril de 2010

feia Marília !


Marilia tinha o aspecto e a cara de um austero professor dos idos anos sessenta, expressões enigmáticas e um corpo que deixava pouco a desejar. Fraca de peito e na atenção que suscitava nos homens, prendada com incómodo buço, portadora de débil estrutura óssea, aprendera desde cedo a trilhar seus mistérios e procurar seu canto sem alardes ou espaventosas chamadas de atenção. Longe ia já sua meninice, carregada de segredos e fantasias, de bailaricos também, e se eles os havia e eram tardes de vida, onde a eterna e transparente Marília fazia as vezes de padre e médica, amante e amiga, onde saltava da chacota de que era alvo para a mão amiga que sabia dar e nunca negava. Marília nascera tarde e a más horas, tanto do dia como da vida, era a oitava de uma família apenas remediada e quisera vir ao mundo a meio de noite de inverno, tanto assim fôra que dera seu primeiro grito no mesmíssimo quarto onde viveria até que casasse. E, mostraria o tempo e o fraco saber dos homens, tal desiderato não se afiguraria de fácil cometimento à pobre, não de espírito próprio, pobre sim de sorte e sítio de vida. Marília, como fácil se infere do exposto, era mais para o feia, carregava pouco jeito no menear, agarrava-se à instrução como náufrago a bote. Sábia pois, ainda que a despeito da indesejada e pouco feminina figura enfrentasse a vida em meio a uma corja de analfabetos, cobardes e estultos vizinhos e conterrâneos. O nome, até esse, escolhido e dado por impulso em noite de telenovela, tornava-a pouco menos que assunto principal da terra, fosse qual fosse o prisma sob o qual arengasse a homenzada, a não ser quando a lascívia imperava e sob o calor tórrido dos verões ou o frio gélido dos invernos trouxesse a cambada a talhe de foice as venturas e desventuras de Carolina, ainda que delas pouco ou nada soubesse, mas cujas curvas e face sem buço, já para não falar de um peito de cortar a respiração e trazer arritmias, descontando um par de pernas talhadas pelo divino e um olhar verde azulado a assomar coisa de estranja, cujas curvas dizia-se, traziam regozijo ao falatório desbragado por entre imperiais e taças de branco. Nesses dias, Marília sentia-se livre e feliz, aprumava a vida, tecia o futuro, nesses mesmos dias Carolina, rica menina linda, amargava os primeiros passos de passarinho ferido ao abandono a que a vida haveria de a votar, por mais que de arabescos rodeasse suas saias e trajares. Se a uma trouxera deus tiques do demo, a outra este enfeitiçara com arte e requinte em trejeitos de boneca de porcelana.

Quis o destino ver chegar à cidade aquela desprotegida e saloia mulher no dia em que se celebrava a chegada de um verão mais, quando o movimento e harmonia das coisas se espreguiçava por entre jardins e esplanadas, por entre o aroma a flores silvestres e ares de praia, daí que pouca ou nenhuma importância pudesse a urbe ter dado ao facto. Acresce, claro está e se bem nos lembramos, que a pessoa não era em si por si factor de deslumbre ou chamamento, o que não invalida que um golpe de fortuna ou de comiseração divina pudesse dar ao momento se não a solenidade de umas boas vindas, ao menos o acenar de gente em sua surpresa a estranhos. Puro engano. Marília, como no dia em que soltara seu primeiro berro, via repetir-se o esgar de enfado e indiferença no rosto de quem por acaso ou distracção resolvia fitá-la. Por arte e ironia do destino, haveria essa mesma cosmopolita turba de experimentar as agruras de sua pouca fé naquilo que deus ensinara como a coisa de amar o próximo. Se à nossa aldeã, de quereres forjados em alma só e guerreira, moldada em certeza de que pouco deus haveria para ajudar, diferença alguma faria semelhante exagero de desapego, já à outrora cobiçada, enaltecida, vazia e envaidecida coqueluche da terra deixada, o assunto poderia causar transtorno na alma e confusão no olhar, trazendo e levando o fugaz brilho a turvo e penoso esgar. Choraria Carolina as dores nunca queixadas de Marília cara de homem, passeariam as travessuras e inocência dos eleitos pelo coração da pobre , porém nobre e em íntimos bocados bem se vê, Marília.

Assim soubéssemos de antemão o trilho de vida de uma e outra, as ruelas e praças, as avenidas e rotundas que a uma e outra a grande cidade e sua vida iriam oferecer em mascaradas orgias de oportunidades, e poderíamos almejar o divino papel de a ambas dar a mão em acaso feito destino.


Sentados longe, na aldeia que as vira partir e em frente à costumeira rodada de jarros de branco, sentados os deuses cúmplices em seu perdido e fantasioso mundo, sentados simplesmente em frente a escrita e a leituras, teciam os improváveis personagens a teia que o futuro de Marília e Carolina haveria de moldar, questionando se à cidade ora nascida em vida de tão fraca e forte gente valeria a pena voltar ...


Nenhum comentário: