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Faz calor, o do costume em mês de Agosto decretado e generalizado para tempo de férias, o tempo passa com o vagar de quem esquece as correrias e preocupações dos dias, mudam os cheiros e prepara-se a muda de cores na roupa das árvores, mudam as gentes que se cruzam com sorrisos desconhecidos, fugazes e felizes.
No parque de estacionamento da praia da Conceição, o rebuliço diário do velho arrumador de carros incomoda o velho palácio, outrora habituado ao cadenciado ritmo dos coches puxados a cavalo. Pela manhã, uma qualquer pois que se repetiam, eis que chegam e partem as famílias com sua criançada ao colo dos avós ou empregadas, reina a paz de quem tem pela frente a frescura do mar e o aroma divino da maresia, à mistura com cremes nívea e bolas de berlim quentinhas. Bee sente-se feliz, agradece ao deus que reza com maiúscula e olha pela prole que, não sendo muita, não é tão pouca assim em cuidados a observar. Os dias que se seguem, à volta de trinta, trazem o descanso de uns, trabalho extra de outros e a liberdade ampliada a meninos da cidade, habituados à nudez do espírito de asfaltos e pressas impessoais. A família reúne-se pois em espaços e tempos iguais num caos organizado, convive na estranheza do tempo tão disponível para uns e outros, aproximam-se os mais chegados em despreocupado ambiente, começam a partir os mais dados a caminhos de libertina liberdade, coisa de sentido único e pouca companhia.
Na praia, em face ao calor e ocupações várias, Bee agradece ao céu um dia mais no meio de gente sua, não pode imaginar, nunca o fará, que amor assim é coisa irrepetível, rara no mínimo. Assim entendesse o vazio, um certo vazio, de certos dias dos trinta seguintes.
A azáfama no pequeno areal traz aos veraneantes a certeza de sua escolha, a troca da gente fechada e ocupada na Lisboa agora longe pela gritaria da miudagem e disputa de um bom lugar para as toalhas, torna a chegada à praia num exercicio a requerer cuidada abordagem. Férias sim mas atenções em riste!
Este era o momento em que o infinito mistério dos aromas invadia para sempre as memórias de cada um, a receita local de mar e bronzeadores, de bolos e barcos de borracha, de baldes de areia ora seca ora molhada, dava a todos e a cada um a vontade de seguir caminho sendo feliz, despreocupado quiçá.
Bee era-o e saberia sê-lo, doravante e no passado, de outras praias e daquela também, ignorando apenas que certas coisas eram, senão irrepetíveis, raras.
O regresso da praia trazia mais cansaço que encanto, o sal do mar na vista e na alma, a longa escadaria a galgar de regresso ao carro, adormeciam a vontade do corpo e faziam adivinhar um apetecido almoço e garantida sesta de inicio de tarde, a mesma tarde que traria descruzados os caminhos da família, aproximavam uns e libertavam outros. De vez, mas isso Bee não podia prever. Ria franca, rezava sentida, mas pouco espaço dava a previsões, fossem de luz ou apenas sombrias.
Por volta do fim de tarde a mesa enchia-se de novo com pratos e receitas de verão, lanchava quem queria e isso eram quase todos, os que regressavam de nova visita à praia e seu mundo de liberdades e gente nova, os que aproveitavam as diferenças na paisagem para se sentir fugidos à rotina de um ano quase inteiro, os que apenas olhavam em curiosa postura o que traria a noite quando chegasse. Lanchava-se porque a mesa estava posta, assim era vezes ao dia, porque os cachorros quentes da manhã voltavam e com eles a comunhão de assuntos a dialogar com o preceito das coisas de rápida ou pouca importância.
O jantar, novo argumento para a presença de todos, família afinal, ocupava já Alice na cozinha, em seu merecido descanso de disputas entre netos, cantarolando por entre verduras e outros alimentos a temperar e cozinhar, por entre passado fausto que se esvaía em novos tempos, ainda que ao ritmo dos anos setenta se iniciasse o escoar de sua geração. Alice amava Bee em sua força de medo nenhum e isso cantarolava também embora para dentro e escondido em si, muito para além de tachos e panelas de verão.
As duas mulheres primavam pela fragilidade física, em contraste com a profunda firmeza perante a vida e suas agruras, coisa que tratavam olhando em frente, desarmando-a pela simplicidade com que entendiam a fraqueza alheia. Duas mulheres boas portanto, e no entanto de difícil evidência naquelas manhãs e tardes que teimavam em repetir-se todos os anos, que teimavam em viajar de regresso à cidade. Que teimavam em ir ficando, em mês de Agosto ou outro nome.
O serão teria inicio após o jantar, não sem antes a azáfama de nova ida à vila, com direito à emoção de um café junto à cosmopolita gente da terra ou visita à verdade das coisas feitas por artesãos e expostas em sua feira. Variando por entre espaços de tempo ora curtos, ora demorados, parte da excursão familiar desvanecia-se por entre uma oferta de adolescentes tentações, onde a noite acelerava livre nas mãos de rapazes rebeldes e meninas de beleza bem.
Bastas vezes, para não dizer todas as vezes, o regresso àquela casa que acolhia o mês de Agosto e os fins-de-semana do ano inteiro, era destinado apenas aos mais velhos, no que eram seguidos por um dos pequenos, que descobria no cheiro da praia e maresia a magia de perceber o bocado feliz no coração de cada um que julgava seu. Como Bee, como Alice, falho no entendimento de coisas senão irrepetíveis, ao menos raras, regressava no entanto a casa. Feliz, sorrindo, sonhando e cansado.
De manhã, na seguinte e nas que faltavam para completar as trinta que compunham a empreitada da viagem, repetiam-se os gestos e os caminhos que aproximavam e afastavam os olhares de cada um por ali.
Sonhando. Partindo. Rezando.... até que chegasse o dia trigésimo e o regresso à vida num bairro de uma cidade.