terça-feira, 21 de setembro de 2010

um pássaro chamado amor


Aos quase noventa anos, Manuel esquecera já todos os labirintos por onde se deixara perder na fantasia infinita que a vontade de criança lhe escancarara, tantas eram as coisas e os dias por onde se embrenhara, fugindo ao medo de perder os minutos que as horas traziam, carregados de momentos mil, sonhos muitos e pessoas sem fim. De todos Manuel guardava agora um ténue traço, quase invisível, do que outrora desenhara o caminho de todas as manhãs e lhe tinha trazido e levado a certeza de conhecer o tamanho e o significado das palavras. Manuel mal ouvia e o silêncio seu companheiro resguardava-o da tristeza do desencanto.
A seu lado, numa ladainha que lhe soava familiar, Mariquito repetia as convicções que lhe invadiam o corpo em vontades e ousadias desacobardadas, segurava a mão ossuda do avô, como se descobrisse na sua magreza e fim a herança dos meninos de tesouros e segredos guardados.

- Avô, se eu um dia quisesse ser como tu ... importar-te-ias?

A chuva veio impiedosa, inclemente, e da praça fugiram as pessoas em busca de refúgio, debandaram os pássaros de asa curta e presa, esborrataram-se as cores das telas bonitas e vãs, sumiram os deuses das palavras sem nexo, e assim Manuel pôde chorar com todas as lágrimas de sua vida, porque era chuva o que lhe escorria nas rugas e na alma, lhe lavava a mágoa do silêncio, lhe arrumava e guardava a certeza de que nunca estivera afinal perdido em sonhos sós.

- Estás a chorar Avô?

E a manhã seguiu vazia por ali e por todos os lados mais, onde se refugiavam os desentendidos e os corajosos de lugar vazio de espaço, onde as almas se escondiam amando-se em espelhos de todas as formas, perdões falhos e certezas mortas. De caminhos e destinos apenas únicos.

- Deixa Avôzinho, que ninguém nos vê, deixa-te e fica que te guardo por esta manhã e por todas as que me esperem até me sentar em teu lugar, cuidas por acaso que ninguém nos olha, fugidos ao seu mundo das coisas suas?

Manuel agarrou a mão frágil e ossuda de Mariquito, como frágeis e ossudas são as mãos que se dão na força do querer e do corpo, sorriu ao tamanho insignificante das promessas de sentido vazio que escutara nos antigos dias em que ouvia o sol e a lua, e deixou-se dormir na mesma paz com que sempre soubera sonhar.
Mariquito ficou por ali, fechou os olhos também e desejou aprender como era perder-se no caminho onde não se perdia a vontade das pessoas!

A manhã simples, continuou!


imagem de bocados de tudo

2 comentários:

continuando assim... disse...

um desejo a seguir ...a viver a alimentar
a dar sentido ao que pode ser viver ...simplesmente


comovi-me
gostei beijo
teresa

Simone.sissagyn disse...

Belíssimo texto!!!!