A rua onde ficava o Café que Marco frequentava chamava-se Rua do Café. Marco sempre achara que isso significava que a aldeia de onde viera não diferia em muito da cidade que o acolhera. Mal, mas acolhera, dir-nos-ia se lhe perguntássemos. Não o faremos, mas fica o registo.
Marco não se chamava Marco mas assim se fazia chamar, achava esse nome mais apropriado para quem viera de sitio humilde, Marco chamava-se Pedro mas decidira que esse nome o faria desaparecer com mais força ainda nas ruas da grande cidade. Grande mas com um Café na Rua do Café, onde se bebiam as mesmas taças de vinho branco, as mesmas mini's e martinis, onde se amarfanhavam as vontades de pé, encostado a um balcão. Marco amarfanhava as vontades de outro modo, não bebia taças mas mudava de nome.
Naquela tarde, como em todas as outras tardes desde que lembrava de frequentar o Café da Rua do Café, a mesa que ficava ao canto sob a ventoinha de plástico estava ocupada pelo mesmo homem de sempre, ninguém lhe sabia o nome nem se o mudara por questões de tamanhos e geografias, todos sabiam que não era totalmente provido de juízo pois de outro modo não fixaria o olhar no vazio como se rezasse ladainhas encomendadas. O homem mirava uma mosca poisada na mesa, a mosca não mirava coisa alguma mas, tal como o olhar do parceiro de mesa, não voava dali nem deixava adivinhar que o fosse fazer, ambos pareciam pertencer à casa, melhor ao Café, na Rua do Café como se disse antes. Marco achou que aquele era o dia, o momento de entender porque nunca se sentira em casa na cidade grande. Dirigiu-se a ambos, puxou uma cadeira, sentou-se.
- Olá, chamo-me Pedro, mas podes tratar-me por Marco.
- Olá.
- É tua amiga? A mosca ?
- Estudo-a apenas.
- Como te chamas?
- Marco. Mas podes chamar-me Pedro.
- Que te diz ela?
- Sofre em silêncio...
- Sofrem elas ? As moscas ?
- Em silêncio. Sim ... como nós!
Marco levantou-se, olhou aos lados a conferir se alguém o observara, e pela primeira vez na sua vida pôs-se a questão: sofreriam as moscas, seria isso possível? Tão insignificantes e feias. Sabia-as aos milhares, não, milhões, conhecia-as bravas e varejeiras, de casa, de cavalo e de estábulo, de bagaço, do berne e do gado e de mais e mais que não podia precisar naquele momento, mas sendo assim tantas e de tanta tribo não lhes concedia a certeza no direito ao sofrimento. Eram feias e davam asco, fosse na aldeia que o vira nascer ou na cidade que o via morrer. Voltou à cadeira.
- Vivem muito? ... indagou a Pedro que não se importava que lhe chamassem Marco. O louco!
- À volta de um mês. À volta de trinta os dias para voar. E sofrer também.
- E voam e sofrem?
- E vivem. Viver é voar e sofrer!
Marco, Pedro de origem, experimentou os prazeres de imaginar e especular, não era de ciências nem de lá perto, mas achou que para se sofrer teria de haver cérebro e que bicho assim tão pequeno o teria pequeno mais ainda, que talvez a dor fosse então à proporção, sofreriam pouco elas, as moscas, ainda que voassem sem fronteiras mais que os trinta dias alinhavados para seu tempo de vida. Lembrou-se dos tempos de menino em que as apanhava e lhes arrancava as asas, sentiu um nó no estômago, corou de vergonha pela cobardia e amaldiçoou quem lhe ensinava que as moscas só viviam na merda. Na merda ? .. pensou, mas quem voa e sofre merece as asas arrancadas?
- Como se chama essa mosca? ... arriscou nova pergunta a Marco, Pedro de nascença.
- Não falamos sobre isso, olhamos apenas nos olhos um do outro.
- Ela olha-te, a mosca ?
- Voa, entra em minha loucura e voa.
- Como? Parece morta a coitada, nem se mexe ... não estará morta?
- Não precisa de sair dali para voar. Faz hoje trinta dias e escolheu seu destino imortal. Voará num louco para sempre...
- Esta mosca?
- Não Pedro, perdão Marco, a sua liberdade de ser insignificante!
Marco sentiu faltar-lhe o ar, pediu uma água que bebeu de um trago, renomeou-se Pedro, saiu do Café na Rua do Café, andou até se cansar de ver os rostos das pessoas que nunca reparavam nele, reparou em todas e desejou que pudessem sofrer e voar, andassem na merda ou não.
Voltou à sua aldeia, agora com pouco mais que meia dúzia de habitantes, seca e abandonada aos velhos que a houveram visto nascer, e abriu um Café.
Desejou um dia ver entrar o Pedro da cidade, o louco do Café da Rua do Café, e que trouxesse o seu olhar parado e a liberdade dos seres insignificantes que aprendem a voar sem morrer.
E sendo Pedro de novo, voou como nunca voara no bando de gentes da cidade, onde era pássaro fraco e Marco.
sábado, 11 de setembro de 2010
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Um comentário:
- Sofre em silêncio...
- Sofrem elas ? As moscas ?
- Em silêncio. Sim ... como nós!
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como todos ...
gostei :)
http://www.youtube.com/watch?v=sqK7Ys155j4
assim sendo ..estás perdoado ::)
bj
teresa
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