quinta-feira, 23 de setembro de 2010

memórias de uma praia



Faz calor, o do costume em mês de Agosto decretado e generalizado para tempo de férias, o tempo passa com o vagar de quem esquece as correrias e preocupações dos dias, mudam os cheiros e prepara-se a muda de cores na roupa das árvores, mudam as gentes que se cruzam com sorrisos desconhecidos, fugazes e felizes.
No parque de estacionamento da praia da Conceição, o rebuliço diário do velho arrumador de carros incomoda o velho palácio, outrora habituado ao cadenciado ritmo dos coches puxados a cavalo. Pela manhã, uma qualquer pois que se repetiam, eis que chegam e partem as famílias com sua criançada ao colo dos avós ou empregadas, reina a paz de quem tem pela frente a frescura do mar e o aroma divino da maresia, à mistura com cremes nívea e bolas de berlim quentinhas. Bee sente-se feliz, agradece ao deus que reza com maiúscula e olha pela prole que, não sendo muita, não é tão pouca assim em cuidados a observar. Os dias que se seguem, à volta de trinta, trazem o descanso de uns, trabalho extra de outros e a liberdade ampliada a meninos da cidade, habituados à nudez do espírito de asfaltos e pressas impessoais. A família reúne-se pois em espaços e tempos iguais num caos organizado, convive na estranheza do tempo tão disponível para uns e outros, aproximam-se os mais chegados em despreocupado ambiente, começam a partir os mais dados a caminhos de libertina liberdade, coisa de sentido único e pouca companhia.
Na praia, em face ao calor e ocupações várias, Bee agradece ao céu um dia mais no meio de gente sua, não pode imaginar, nunca o fará, que amor assim é coisa irrepetível, rara no mínimo. Assim entendesse o vazio, um certo vazio, de certos dias dos trinta seguintes.
A azáfama no pequeno areal traz aos veraneantes a certeza de sua escolha, a troca da gente fechada e ocupada na Lisboa agora longe pela gritaria da miudagem e disputa de um bom lugar para as toalhas, torna a chegada à praia num exercicio a requerer cuidada abordagem. Férias sim mas atenções em riste!
Este era o momento em que o infinito mistério dos aromas invadia para sempre as memórias de cada um, a receita local de mar e bronzeadores, de bolos e barcos de borracha, de baldes de areia ora seca ora molhada, dava a todos e a cada um a vontade de seguir caminho sendo feliz, despreocupado quiçá.
Bee era-o e saberia sê-lo, doravante e no passado, de outras praias e daquela também, ignorando apenas que certas coisas eram, senão irrepetíveis, raras.
O regresso da praia trazia mais cansaço que encanto, o sal do mar na vista e na alma, a longa escadaria a galgar de regresso ao carro, adormeciam a vontade do corpo e faziam adivinhar um apetecido almoço e garantida sesta de inicio de tarde, a mesma tarde que traria descruzados os caminhos da família, aproximavam uns e libertavam outros. De vez, mas isso Bee não podia prever. Ria franca, rezava sentida, mas pouco espaço dava a previsões, fossem de luz ou apenas sombrias.
Por volta do fim de tarde a mesa enchia-se de novo com pratos e receitas de verão, lanchava quem queria e isso eram quase todos, os que regressavam de nova visita à praia e seu mundo de liberdades e gente nova, os que aproveitavam as diferenças na paisagem para se sentir fugidos à rotina de um ano quase inteiro, os que apenas olhavam em curiosa postura o que traria a noite quando chegasse. Lanchava-se porque a mesa estava posta, assim era vezes ao dia, porque os cachorros quentes da manhã voltavam e com eles a comunhão de assuntos a dialogar com o preceito das coisas de rápida ou pouca importância.
O jantar, novo argumento para a presença de todos, família afinal, ocupava já Alice na cozinha, em seu merecido descanso de disputas entre netos, cantarolando por entre verduras e outros alimentos a temperar e cozinhar, por entre passado fausto que se esvaía em novos tempos, ainda que ao ritmo dos anos setenta se iniciasse o escoar de sua geração. Alice amava Bee em sua força de medo nenhum e isso cantarolava também embora para dentro e escondido em si, muito para além de tachos e panelas de verão.
As duas mulheres primavam pela fragilidade física, em contraste com a profunda firmeza perante a vida e suas agruras, coisa que tratavam olhando em frente, desarmando-a pela simplicidade com que entendiam a fraqueza alheia. Duas mulheres boas portanto, e no entanto de difícil evidência naquelas manhãs e tardes que teimavam em repetir-se todos os anos, que teimavam em viajar de regresso à cidade. Que teimavam em ir ficando, em mês de Agosto ou outro nome.
O serão teria inicio após o jantar, não sem antes a azáfama de nova ida à vila, com direito à emoção de um café junto à cosmopolita gente da terra ou visita à verdade das coisas feitas por artesãos e expostas em sua feira. Variando por entre espaços de tempo ora curtos, ora demorados, parte da excursão familiar desvanecia-se por entre uma oferta de adolescentes tentações, onde a noite acelerava livre nas mãos de rapazes rebeldes e meninas de beleza bem.
Bastas vezes, para não dizer todas as vezes, o regresso àquela casa que acolhia o mês de Agosto e os fins-de-semana do ano inteiro, era destinado apenas aos mais velhos, no que eram seguidos por um dos pequenos, que descobria no cheiro da praia e maresia a magia de perceber o bocado feliz no coração de cada um que julgava seu. Como Bee, como Alice, falho no entendimento de coisas senão irrepetíveis, ao menos raras, regressava no entanto a casa. Feliz, sorrindo, sonhando e cansado.
De manhã, na seguinte e nas que faltavam para completar as trinta que compunham a empreitada da viagem, repetiam-se os gestos e os caminhos que aproximavam e afastavam os olhares de cada um por ali.
Sonhando. Partindo. Rezando.... até que chegasse o dia trigésimo e o regresso à vida num bairro de uma cidade.

5 comentários:

continuando assim... disse...

um fantástico ..."poder" descritivo !!

gostei desta praia ....

bj
teresa

Anônimo disse...

Muito bom, excente domínio da palavra

Abraço

Pedro Prostes

Anônimo disse...

muito bom, excelente domínio da palavra e capacidade de transportar a lugares que cheiram a infância e a dias despreocupados
pedro prostes

Vitor disse...

…Não fosse por ti assinado e, lido por um qualquer leitor duns quantos que compram bons livros, diria: “Que escritor este, que ousa escrever em patamares ao alcance de muito poucos!”…a surpresa só será para que não te lê amiúdas vezes, cá por mim sem surpresa alguma me delicio com escrita tua….bem que poderias ter o teu nome numa editora…há quem por lá ande por muito menos!

XR disse...

Dias belos, especiais, os que evocas, trinta para os que tanta sorte assim tinham, a fazer esquecer os mais de trezentos desfiados na modorra do betão entre vasos e pequenos canteiros onde um girassol gritaria por falta de ar.

Continuo a gostar de te ler, John.

Abraço