terça-feira, 30 de março de 2010

avô José ....

Esteban era homem de bem. De fortes certezas e fraca compleição.
O cair da tarde trouxera a melancolia que enrolava a ida certeza de que no mundo das gentes em volta, os Muñoz eram coisa de ter em conta. Que o conferissem com a Virgem de Guadalupe, aparecida ao índio Juan Diego e explicada em segredo ao seu avô Juan José.

- Um dia cai-vos em cima a maldição do velho, dizia ao ar. Ele lá sabia porque a mereciam.

Juan José fôra na sua juventude um preguiçoso e um mulherengo, sendo que entre as duas actividades dividia os dias e recolhia os proveitos. Filho único em tempos de frio e fome, por opção divina que não do pai, que à sua mãe fizera retirar os ovários por precoce doença e frágil saúde, Juan José soubera aproveitar o coração mole do casal iletrado que o concebera e parira, soubera saborear as sobras que não dividia. Fizera-se um verdadeiro mandrião, de boas falas e amigos muitos, tornara-se um género de alcaide, ainda que de terra de coisa nenhuma. Juan José, à falta de melhor ocupação nos momentos em que tinha as calças para cima, gostava de debitar ciência sua àqueles que fugindo ao calor inclemente se sentavam a seu lado e dos jarros de fresca cerveja.

- Que nos contas Juan?
- Que vos conto?
- Sim, que podes ensinar-nos rapaz, que aviso amigo ?

Juan parou pensativo, enfiou de uma vez a cerveja que aquecia no copo, mirou com desejo as mamas da taberneira, limpou os beiços, arremeteu um ar de intelecto e disparou:

-Cuidado, um dia irão tão depressa para lado algum e talvez se fodam!

O cair da tarde levou os desocupados, não sem antes assentirem que aquele rapaz deveria saber do que falava. Tinha mãos sem calos, pois que esses tinha-os nos joelhos por virtude de tanta prosápia com fim em tardes de alcova.

Esteban não parava de recordar as palavras que ainda escutara ao velho e moribundo avô, que teimara em morrer sem que tivessem de lhe mudar o pijama ou dar a sopa.
Apenas aqueles fins de tarde o assustavam. Levavam para longe as memórias da sua juventude, teimavam em trancafiá-lo naquela lúgubre sala onde apenas velhos como ele morriam à vez, dos sortudos falava, pois que os sobreviventes essa sorte rezavam e pediam.
Olhando à chuva que parecia temer entrar na sala, que se cuspia e pegava nas vidraças, Esteban deixava escorrer lágrimas em segredo, de homem que soubera arrancar-se ao queixume geral e fazer de sua vida espaço de gente feliz e com cheiro próprio. Há muito que perdera o rasto e nome àqueles a que chamava filhos e netos, cuidando que teriam fugido sem despedidas por medo da profecia que não conseguia calar. Esteban amara Juan José em sua austeridade de malandro e velhaco, em sua história de avô de familia. Nunca o percebera, mas era nele que aprendera que os nossos são para guardar.
A tarde dava agora lugar à noite, sem fantasias de estrelas ou romances de sonhos e luas, apenas um frio grande, grande, um frio do caralho como recordava falar em moço.
Vieram apagar as luzes depois do jantar, Esteban teve de sair e voltar a casa, deixando os amigos desconhecidos descansar umas horas em paz.
Adormeceu na mesma cadeira de sempre, baloiçando de olhos abertos, revivendo os entes queridos que não havia em lugar algum. Agarrou no bolso o velho canivete herdado, fechou os olhos e balbuciou:

- Deixa-os Avô José .. um dia ainda se fodem !

domingo, 21 de março de 2010

a máscara


Nadja. Parada Nadja, perdida no tempo desentendido, em língua estranha e cores sem alinho, que fazes pobre e perdida, por onde ficou teu olhar daqueles tempos, eras tu aquela menina, és tu esta mulher, quem te fez assim e te trouxe prometida em viagem ao céu dos homens sem deus?

Que fujam os homens
E escondam os peixes

Que morra cedo quem a deus teme, temei, que fique só quem o vazio ama, ficai, mas que não esqueçam as gentes a imperfeição dos olhares, não esqueçais pois ..

Que olhando-te assim
Entendo
Olhando-me assim
Acusas
Nadja de estar perdida
O mundo de estar esquecido
Em nudez iluminada
Em olhos de ninguém
Por onde foge o homem deus

Volta Nadja, são teus estes bocados, é tua terra esta, é gente apenas esquecida, de quem eras na partida.

E perdoa sem mágoa
O dia
Onde morremos
Em tua máscara

Imagem retirada de http://www.rabiscuss.blogspot.com/

sábado, 20 de março de 2010

vazio do medo

E se da questão
O âmago
Apenas busca
O vazio

Quando o medo
Somente ele
Te tolhe
T'encolhe

Perdeste o norte
E o sentido
De ti
Sem ti

Pobre estrela só
Tanta é a luz
Que cega
Te cega
Pobre estrela cega
E só

quarta-feira, 17 de março de 2010

william james macneven


Dia de sol inesperado, depois de uma semana de muita água a incomodar uma Nova Iorque que ainda assim é Nova Iorque. Chegado na véspera, eu! Não consigo fugir ao do costume, chego via WTC e vou directo ao Essex, parece que tenho saudades dos hispânicos, dos pequenos almoços escolhidos e pedidos em género de Wall Street, coisas desejadas, gritadas para o ar pelo meu amigo a quem nem o nome sei, já os bigodes e cabelo grisalho guardo sempre que saio num ' até breve ' falado para dentro, servidas e pagas à eterna morena com ar de chilena, seja lá que ar tenham as chilenas, pode até ser boliviana, caraquenha, sei lá, nativa do sul por certo, que de americana nada tem, nem rabo, nem ar deslavado.
Saio à procura de uma encomenda para um amigo, a NY tem de se ir em segredo senão não há como escapar a um ' podias trazer-me só isto ' e ' isto ' pode ser tudo, e tudo é tudo! Desta vez apenas um jogo para computador, coisa de colecção no entanto, de não se encontrar às primeiras, desço a Fulton, sigo até ao porto, que ' a couple of Game Stop Shops ' havia de encontrar de certeza, coisa bem explicadinha por polícia dali, daqueles iguaizinhos aos das séries da FOX, camisa azul, pistola no coldre e ar disponível. Azar. Não encontrei. Ziguezagueei no regresso, subi por outro lado, atravessei uns quantos ' Walk / Don't Walk ' e nadica na mesma.
Trinta minutos já lá iam na busca, já me apetecia fumar, foi só o tempo de encontrar um Starbucks, entrar e sair de balde cheio e escolher onde me encostar. E foi ali mesmo, de frente para o ' JR Electronics ', apreciando o sol e as pessoas, e que pessoas tem NY meus senhores, tem-nas todas, desatei a imaginar vidas, queria sentar-me ali o dia todo e prometo que vos trazia um conto. Encostado ao gradeamento da St. Paul's Church, olho pela enésima vez para a estátua daquele homem, sempre ali, sempre impante em seu jardim, personagem por certo, quando não, porque estátua lhe haveriam de erigir? Por entre goles e fumaças, entro vida adentro do Dr. MacNeven. Assim mesmo. Doutor. Breve lhe conheço a origem, irlandês, um de tantos que hoje celebrarão o St. Patricks e darão a NY as cores verde e laranja tão deles e que tão bem lhes fica. William James, fico a saber. Como também que saiu da sua Irlanda por convicções, coisas de deus, e por lá pela ilha são de rigor no que se venera, o mesmo deus mas de modos diferentes, e se de modos outros sai castigo e a coisa, reza a história, dura e dura, e assim se reza à bulha mas com crença. De tal modo que já no século dezasseis o nosso Guilherme Jaime se fizera médico em Viena e por vias e ajudas de um tio nobre que também pelo seu catolicismo em sitio errado se vira forçado à debanda. E, depois de preso quatro anos, viu no exílio sua sorte, ainda demandou a Paris na esperança napoleónica de uma ajuda francesa à sua causa de deus cristão católico, ' mais rien fait '... e chegar à América foi questão de tempo e ventos marítimos, chegaria a quatro de Julho, vinte e nove anos depois dos americanos que o recebiam de braços abertos terem declarado sua independência. E por lá continuou sua vida de sonhos e de homem, por lá ensinou e curou, aprendeu e apreendeu o aroma de um mundo do mundo. E se bem o deve ter feito, pois que a estátua ali atrás de mim não era comenda de encomenda por certo, era honra de quem veio e trouxe consigo um género de alma com que alguns nascem, feita de sonho e honradez.
Acabado o café, apagado o cigarro, segui Broadway acima em busca da Game Stop que ali me levara, não sem antes prometer ao Dr. MacNeven que voltaria, e que voltaria sabendo dele mais do que os dizeres na lápide me haviam trazido naqueles minutos ao sol.
William, quando voltar a Nova Iorque, passo a fazer-te um pouco mais de companhia. E a aprender contigo um pouco do sonho dos homens. Mesmo que chova!

sábado, 13 de março de 2010

velho

Temo-te senso
Pouco
Vazio

Fitei um velho
Corpo


A deus pedi
Alma d'ele
Em pó

Que a Ele volta
D'Ele veio
D'Ele é

Não queiras
Perdão
Não temas
Solidão
Em um velho
Corpo

Cristal

E caminhando descalço nas águas deslumbrava o velho sorrindo em seus dentes nenhuns, olhado louco pelos pares da aldeia fantasma que o vira crescer e ir-se a gente, que o vira partir em todas as direcções para os lugares de ninguém, e caminhava agora o velho e ia descalço, e sorria teimoso como se se pudesse lembrar das coisas que morriam cedo ...

- De que tens saudades velho?
.....
- De que tens medo ou memória?
.....
Porque não pára tua história? E porque sorris esquecido, gozas ainda abandonado, como não esqueces teu nome, nem os sonhos proibidos? Como ousas caminhar...

E nas águas imaginadas, no rio de lágrimas de saudades do colo de mãe, assim os deuses se vissem vividos, assim os deuses se vissem rezados, e caminhando o velho perguntava ao sonho, de onde surges mulher, tens nome e afinal qual é...

Não ficou para ouvir, não parou de caminhar, não ousou ter a certeza de ser Cristal por ali.
E de Cristal era aquele olhar. Porque Cristal em tempos fôra coisa de ser única!
E caminhando descalço pois o velho, sobre as águas, sorria aos dias em que aprendera a andar!

quarta-feira, 10 de março de 2010

cinco minutos ...

Manuel pegou no corpo e saiu, cinco minutos o separavam de si, cinco minutos o trariam de volta a si, Manuel olhou o tempo como não fazia há muito, como se contasse sem passar, como se passasse apenas parado, Manuel não o via nem grande nem longe, nem ao tempo nem a ele Manuel, cinco minutos apenas, trinta anos apenas, passados sem contar, contados ao passar, do sabor dele mesmo, de Manuel ido e lembrado, de tempo tão passado, e o tempo passou, passaram os anos e os minutos, e tudo continuou, o passado ali a passar, em minutos mais que cinco, em anos apenas trinta. Fazia frio quando o tempo parava. Esquecia o tempo em que o frio ficava. Manuel. Trinta anos depois. Estás igual sabias? As mesmas sardas. Os mesmos olhos verdes. O tempo não passa.
Em cinco minutos!

sexta-feira, 5 de março de 2010

hector

Parou de chover. Começou a ventar. Como se o mundo sem querer, te deixasse pensar.
Em não morrer, e em dias de amar, como se a vida com querer, te levasse a sonhar. Na chuva que pára, no vento que corre, como a vida com gente, de amor que não morre.

Pára Hector, estás outra vez com aquele olhar, de menino que não és, de abençoado da sorte, sai e corre a trabalhar, o sustento não voa em palavras de ninguém, vai-te miúdo fantasma, dá aos braços, consome-te ao sol, mirra ao frio e foge à fome, mostra-me as mãos, que as quero sujas, de lama que não de tinta, de sangue que não de arabescos de escriba.

- Vai trabalhar caralho, são horas e tua mãe doente, e teus irmãos, e teus irmãos? Mas quem pensas que és? Porque te chamei Hector ? A ti... que és ninguém!

Recomeçou a chover, foi-se o vento sem olhar para trás. Como se o mundo sem querer, não se deixasse ele ousar. Em viver, e em dias de ficar, como se a vida com querer, não amasse pensar. Na chuva que corre, no vento que morre, como a gente com vida, que descobre um lugar.

Hector morreu aos 10 anos. Feliz. Homem já. E na chuva escreveu, o vento que não morreu!

quarta-feira, 3 de março de 2010

de deuses e crianças

Em homens iguais se repetiam os deuses
Pelos dias vazios se cruzavam os credos
Nas juras de crença, de sacrifício morriam
Os deuses repetidos nesses homens falidos

... e nos braços gigantes de uma mãe sem forças, no sorriso impossível de uma criança que morre. E nas lágrimas secas de quem se agarra à memória, nos passos sem rumo das almas sem companhia ...

Em deuses iguais se sonhava a esperança
Em cheios dias se davam todas as mãos
E sacrificando as crenças, morriam as juras
E nos esquecidos descobriam a riqueza divina

... de deuses moldados nos sorrisos dos guerreiros, de generais sem medo em mãos esquecidas, do caminho escondido em segredos de amor..

Não te esquecerei velho, nem no fim dos teus dias
Levar-te-ei criança por onde me levarem os deuses
Assim me ensinem a guardar vosso franco sorriso
Sem homens iguais, nem deuses esquecidos