Esteban era homem de bem. De fortes certezas e fraca compleição.
O cair da tarde trouxera a melancolia que enrolava a ida certeza de que no mundo das gentes em volta, os Muñoz eram coisa de ter em conta. Que o conferissem com a Virgem de Guadalupe, aparecida ao índio Juan Diego e explicada em segredo ao seu avô Juan José.
- Um dia cai-vos em cima a maldição do velho, dizia ao ar. Ele lá sabia porque a mereciam.
Juan José fôra na sua juventude um preguiçoso e um mulherengo, sendo que entre as duas actividades dividia os dias e recolhia os proveitos. Filho único em tempos de frio e fome, por opção divina que não do pai, que à sua mãe fizera retirar os ovários por precoce doença e frágil saúde, Juan José soubera aproveitar o coração mole do casal iletrado que o concebera e parira, soubera saborear as sobras que não dividia. Fizera-se um verdadeiro mandrião, de boas falas e amigos muitos, tornara-se um género de alcaide, ainda que de terra de coisa nenhuma. Juan José, à falta de melhor ocupação nos momentos em que tinha as calças para cima, gostava de debitar ciência sua àqueles que fugindo ao calor inclemente se sentavam a seu lado e dos jarros de fresca cerveja.
- Que nos contas Juan?
- Que vos conto?
- Sim, que podes ensinar-nos rapaz, que aviso amigo ?
Juan parou pensativo, enfiou de uma vez a cerveja que aquecia no copo, mirou com desejo as mamas da taberneira, limpou os beiços, arremeteu um ar de intelecto e disparou:
-Cuidado, um dia irão tão depressa para lado algum e talvez se fodam!
O cair da tarde levou os desocupados, não sem antes assentirem que aquele rapaz deveria saber do que falava. Tinha mãos sem calos, pois que esses tinha-os nos joelhos por virtude de tanta prosápia com fim em tardes de alcova.
Esteban não parava de recordar as palavras que ainda escutara ao velho e moribundo avô, que teimara em morrer sem que tivessem de lhe mudar o pijama ou dar a sopa.
Apenas aqueles fins de tarde o assustavam. Levavam para longe as memórias da sua juventude, teimavam em trancafiá-lo naquela lúgubre sala onde apenas velhos como ele morriam à vez, dos sortudos falava, pois que os sobreviventes essa sorte rezavam e pediam.
Olhando à chuva que parecia temer entrar na sala, que se cuspia e pegava nas vidraças, Esteban deixava escorrer lágrimas em segredo, de homem que soubera arrancar-se ao queixume geral e fazer de sua vida espaço de gente feliz e com cheiro próprio. Há muito que perdera o rasto e nome àqueles a que chamava filhos e netos, cuidando que teriam fugido sem despedidas por medo da profecia que não conseguia calar. Esteban amara Juan José em sua austeridade de malandro e velhaco, em sua história de avô de familia. Nunca o percebera, mas era nele que aprendera que os nossos são para guardar.
A tarde dava agora lugar à noite, sem fantasias de estrelas ou romances de sonhos e luas, apenas um frio grande, grande, um frio do caralho como recordava falar em moço.
Vieram apagar as luzes depois do jantar, Esteban teve de sair e voltar a casa, deixando os amigos desconhecidos descansar umas horas em paz.
Adormeceu na mesma cadeira de sempre, baloiçando de olhos abertos, revivendo os entes queridos que não havia em lugar algum. Agarrou no bolso o velho canivete herdado, fechou os olhos e balbuciou:
- Deixa-os Avô José .. um dia ainda se fodem !
terça-feira, 30 de março de 2010
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