Aquele era o dia, não passaria um mais que fosse, fechada em si, abandonada viva em mundo que nunca sonhara, nunca lera ou imaginara, nem nos mais recônditos momentos de alucinações Nostradamusianas que em tempos seu refúgio haviam sido, aquele era o dia e pronto, assim o pensara, assim o escolhera ! Cansada, velha e cansada em corpo de sulcos e rugas, Maria de Jesus há muito que perdera a esperança de seu homónimo lhe valer, tanto terço lhe dedicara em franca e aberta fé, sem nada pedir em retorno que não a pacatez de uma vida sossegada em desistências e papéis de mordomia, tal a sua condição de mulher e mãe em vila de província aconselhavam e arrumavam em tradição secular, milenar talvez. Nunca se ajeitara em belezas e artefactos, nunca nada saboreara para além da recompensa de se sentir encaixada e arrumada em vida de juntar água, conquistada a duras penas de trabalhos e afazeres madrugados, de choros calados e sonhos abortados. Dona Jesus, assim se habituara a ouvir sua existência, olhava o céu e perguntava ao Deus que acreditava por ali, se merecedora era de tanto desprezo e abandono, o marido a trocara pelo vinho e dominós, os filhos a olhavam em prolongamento de fraldas a mudar em idade adulta, nunca um beijo sentira em sua verdade, apenas os resmungos e ingratidão daqueles a quem silenciosa e embevecida entregara a vida que lhe coubera em sorte e que vira gritada numa manhã como as outras em desaparecido ano de desaparecida monarquia, 1910, noventa e oito atrás, portanto .
Apanhada a carreira da Mafrense, percorreu aqueles três quilómetros e qualquer coisa que apenas conhecia de calcorrear a pé, enxugou a secura de uma lágrima a que julgava não ter direito, olhou o mar e nele viu a sua ida e saída de um lugar que lhe haviam ensinado a estranhar. Maria, Maria de Jesus, aproximou-se da pequena falésia e de lá se fez pássaro com vida e asas, entregando à gravidade e sua lei a reposição do equilibrio terreno. Caída no mar com estrondo inaudível naquele dia de fúria marítima, deixou-se arrastar água afora, gozando pela primeira vez a sensação de se ser o abraço de alguém, gozando a impotência perante a avidez das ondas que tanto a queriam. Quis o destino, o seu homónimo quiçá também, que por entre espumas e gotas de fúria levadas ao vento, se enrolasse em destroço de madeira, larga tábua ali perdida, onde por entre golfadas engolidas e esbracejares desatinados se viu enrolada, gozada e brincada, num desamparo que a atirou à correnteza e rebentação, qual Cristo seu parceiro de primeiro nome, agarrada ao pedaço de madeira onde contava despedir-se da aventura terrena. Pois não, aqui se deu a intervenção divina nunca dantes vislumbrada, Maria ergueu-se, soergueu-se, contorceu-se, dropou, gritou, suas negras vestes viu desfraldar num ' aerial ' nunca visto nem em reportagens a preto e branco, reentrou no areal perante o pasmo, a descrença feita coisa viva, a veneração quase divina de uma turba de surfistas, oriundos dos mais longinquos pontos do planeta para domarem as ondas de Ribeira de Ilhas e acolherem em sua percepção de vida a chegada de um ser humano que até ali nunca o fôra.
Maria chegou ao areal enrolada na tábua que a vida lhe devolvera em sua plenitude, debaixo de uma chuva de aplausos e incredulidades, caminhou de volta à paragem da Mafrense, chegando a casa já acabada a novela da noite. Não lhe ocorria nada que justificasse à ausente familia a ausência da sua sombra e traçado naquela tarde, com a agravante das suas vestes pingarem feitas caleira em dia de chuva. Porém, nem tal era necessário, célere era o povo em suas passagens de boca a boca, o espanto pelo espavento da coisa noticiada e bradada pelo povaréu elevara-a à condição de mulher, esposa e mãe, nunca os seus dias se repetiriam em transparências por ali, retrato na sala e colecção de recortes do testemunhado em jornal da região. Na praia, o mito ficara criado, para longe a visão foi transportada, contada e recontada, de um ponto acrescentada. Maria guardou o segredo, o segredo de seu desespero saltado, o segredo de ter vislumbrado a imagem do seu igual em nome empurrá-la para um take-off que nunca pedira em tanto terço rezado ! Adormeceu tarde e em seu velho aposento, na cruz viu a vida e um homem quieto e parado que aprendera a conhecer!
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008
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16 comentários:
Amigo,que os desígnios do Senhor são insondáveis, já se sabia. O que talvez nem tu soubesses é que a escrita te sai fluida e varrida a vento que faz ondas boas de surfar, nem que seja numa tábua que traga até nós as Marias de Jesus
Dassss Zézito, vindo de ti, a quem eu gosto de ler, com quem aprendo a aprender ... vindo de ti, soa a elogio !
;-)
"geeeeeee... o que para aqui vai!"
eu vou ser um pouco mais explicito e desenvolto que essa mera expressao tão pouco evoluida
pai:
o post está muito bom. gostei da parte em que a pobre senhora se levanta da água qual pássaro enlouquecido, e perante uma fúria nunca anteriormente vista, faz dois mortais encarpados no ar e voa a velocidades estonteantes planeta fora.
agora a sério, o post está excelente
keep going
Não caindo no lugar comum,o comentário do Ceitil ao teu post diz tudo...
E como estou aprendendo a aprender,
Que mais poderei dizer!
Janjas, super post!
Fizeste-me passar por vários filmes... Thanks!
Abraço,
Bi
Tal como te disse, tenho mais jeito para interpretar as tuas fotografias que adoro, mas não há dúvida que tens jeitinho... de qualquer forma, prefiro estórias mais alegres! Continua a escrever o que te vai na alma... beijinhos M
special...as usual.
bjo
Muito bom, muuuuuito bom, mesmo a roçar o magnífico. Tás lá chaval. Agora é contigo o que se vai seguir. Muito bom mesmo.1 abraço
ARTUR
pretérito: I will ..
vitor: basta que continues a aparecer e a ler..
bi: ;-)
vila pery: não vejo tristeza na história, bem antes pelo contrário..
M&M&M: as special as ... the lover's corner ? ;-)
art: time is getting there ... ;-)
Amigo Red,a curiosidade hoje foi de ir visitar o blog do teu filho,e cuida-te pois ele dentro em breve "passa-te a perna"...Lol!
É bom de escrita o "júnior",pudera, herdou o que de bom o pai tem!
Um abraço
Up's demorei um bocadinho mais do que o costume, mas li coisas fantásticas.
Aliás não me canso de dizer, adoro ler-te.
Fabulous...
Tenho andado com pouco tempo para ler, para visitas a blogs e etc, mas sempre que posso dou aqui um pulo... Hoje pulei e estou mt feliz por o ter feito.
gr8 one, Red!
vitor: o Miguel lá encontrará o seu caminho de escrita, assim espero. Na bola.... népia ! ;-)
ju: bom ouvir isso, bom mesmo!!
Sof: Phew ... pensei que já não te sentasses neste sofá que te guardo ... ;-)
Já li este texto umas 5 ou 6 vezes... e continuo sem saber o que dizer.
...
É daqueles textos que dão prazer ler... mas são incomentáveis. Tu sabes porquê.
Um big crazy kiss para ti.
E o incomentável se torna comentável, se por desígnio divino ou intervenção alada (vou mais para a segunda...), isso já não sei...
A descrição de Maria de Jesus está fantástica. Conheço um sem número de mulheres como ela, mas nunca tinha lido uma descrição que se aproximasse nem perto daquilo que desenhaste com palavras. Quase conseguia vê-la...
Quanto à peripécia surfista da senhora... como já vem sendo típico na tua escrita, é algo inesperado, quase patético! Imaginar a senhora no autocarro toda a pingar depois de uma ovação de surfistas e uns quantos flick flacks... Deixei-me mesmo rir!
É este o teu encanto. Num texto que aparentemente nos encaminha para uma história sulcada nas rugas de uma anciã, colocas a frescura de um acontecimento inesperado e quase despropositado!
Ah! E faço minhas as palavras do Zé... cá espero o livro (o teu e aquele que me sugeriste :D)
Um grande beijinho*
PS - Não sei se reparaste que o meu post foi um pouco dedicado a ti... ;)
Bravo!...
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